3.1.21

Sobre-viver: Eckhard Ernst Kupfer e sua poesia-antídoto


Dra. Vanete Santana-Dezmann


Passeando pela amplidão do Rakete Museum, em Neuss, entre a análise minuciosa dos fios dourados de uma tapeçaria japonesa ou da filigrana de um estojo de madeira, entre uma xícara de café e a contemplação da chuva lá fora, Eckhard Ernst Kupfer, diretor do Instituto Martius-Staden (São Paulo), em tom ameno e, por vezes, emocionado, falou um pouco sobre seu livro de poemas recém-lançado “Sobre viver / Über leben” (Editora Patuá, 2019).

Abaixo, você confere suas confissões e um pouquinho do livro sob a perspectiva de sua interlocutora, Vanete Santana-Dezmann.

 


 Convite à vida

 “Foi a tradução que me salvou depois do meu desastre do petróleo. Em vez de recorrer ao suicídio, ao álcool ou a qualquer estupefaciente recorri ao vício de traduzir, e traduzi tão brutalmente que me acusaram lá fora de apenas assinar as traduções. Mas era o meio de me salvar. Hoje me sinto perfeitamente curado, – e por isso abandono o remédio.”[1] Esta confissão de Monteiro Lobato sobre suas atividades no período em que esteve preso (de março a junho de 1941), registrada em carta enviada a seu amigo Carlos Rangel, testemunha o poder redentor da escrita – de textos próprios ou de outros, como no caso da tradução.

Embora nem sempre este poder redentor tenha se concretizado, conforme demonstram os exemplos de Virginia Woolf, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e tantos outros, o fato é que ele funciona na maioria das vezes. Prova disso é a infinidade de escritores mortos por morte natural, acidentes ou doenças.

Quando se acredita que após nossa fugaz passagem por este mundo nada mais há, manter-se preso à vida, a despeito das adversidades, é um desafio que a escrita, especialmente de poesia – dado seu caráter subjetivo – ajuda a enfrentar. É disto que Eckhard Ernst Kupfer fala na introdução a seu mais recente livro, seu primeiro de poesia, “Sobre viver / Über leben”.

Filho de um soldado da Schutzstaffel (Tropa de Proteção"), abreviada como SS, com quem teve pouco contato na infância devido às constantes campanhas da II Guerra, Eckhard se tornou jornalista, estudou literatura e filosofia, profissionalizou-se em comércio exterior e acabou por se radicar no Brasil, onde vive há mais de quarenta anos e é diretor do Instituto Martius-Staden, uma das mais sólidas instituições dedicadas ao intercâmbio cultural entre o Brasil e a Alemanha, sediada em São Paulo, junto ao Colégio Visconde de Porto Seguro.

“Sobre viver / Über leben” traz poemas em versos livres – como a vida deve ser – sobre a tristeza, a esperança e sua perda, mas termina otimista, falando de juventude, amor, confiança e quebra de tabus e preconceitos.

No poema “Innerer Krieg / A guerra interior”, por exemplo, que integra a primeira parte do livro, encontramos a inquietação diante da guerra, que marcaria o autor interna e externamente. O poema se encerra com a paz inquietante:

 

Der Krieg ist beendet / A guerra acabou

folgt der unheimliche Frieden / segue-se a inquietante paz

in dir / dentro de você

ein grausames Spiel / um jogo cruel

 

Em “Diese Stadt / Esta cidade”, poema inspirado por São Paulo e integrante da segunda parte, transparece um pouco da desesperança diante de um país do futuro para o qual o futuro nunca chega:

 

Diese Stadt / Esta cidade...

Fände sie toll / que eu acharia incrível

Wenn ich sie sehe / se a visse na internet

Im Netz, in der TV / ou na tv

Aber nie aus der Nähe / mas nunca de perto

 

O poema metalinguístico “Vom Schreiben / Da escrita”, integrante da terceira parte, compara a leveza de escrever em tempos pós-modernos, em uma nova língua – o Português – com o rigor da escrita – e da educação – no pós-guerra alemão:

 

Vorbei die Angst ich zu verschreiben / Passou o medo de errar

 der PC korrigiert mich sofort / o PC me corrige na hora

 ich warte auf den Schlag / aguardo a cacetada

der nicht kommt / que não vem

nütze die Freiheit aus / desfruto a liberdade

und spiele wie ein Pianist / de tocar como um pianista

 

Finalmente, na última parte, a coragem de tocar na ferida sempre pronta a verter sangue:


Er war mein vater / Ele era meu pai

stand plötzlich da / de repente estava ali

es war Frühling / era primavera

ich gerade sieben Jahr / eu tinha apenas sete anos

kannte ihn nur von Fotos / só o conhecia de fotos

in Uniform, Soldatenkappe / em uniforme e quepe militar

das Hakenkreuz / a suástica

keine Attrappe / nua e crua

wir lernten uns kennen / só então nos conhecemos

 

A capa reproduz um registro da videoinstalação das artistas Néle Azevedo e Vanessa Ramos-Velasquez baseada em “O mito de Sísifo”, de Albert Camus, e exposta no Espaço Vitrine em São Paulo em 2016.

Na mitologia grega, Sísifo, um sábio, ao hegar ao reino dos mortos, o Hades, recebeu um castigo por sua rebeldia: foi condenado, por toda a eternidade, a empurrar uma grande pedra de mármore até o topo de uma montanha, porém, sempre que estava perto de alcançar seu objetivo, a pedra rolava para trás até o ponto de partida. Por isso, toda tarefa que envolve esforços inúteis é considerada um “Trabalho de Sísifo”. É esta tarefa de Sísifo – encontrar sentido para a vida e esquecer o passado – que Eckhard Ernst Kupfer se dedica, escrevendo poemas. Mais do que pela coragem para se desnudar, seu livro é marcado pela coragem para viver.

Fica aqui um convite à superação dos obstáculos e experiências negativas, um convite à vida e – por que não? – à leitura de “Sobre viver / Über leben” e à escrita de suas dores e alegrias.


Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 


 





[1] São Paulo, 05/03/1945, Lobato, 1959a, p. 366-36.

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