3.1.21

Academia Brasileira de Letras – a construção da nação pela literatura


Dra. Vanete Santana-Dezmann


Partindo-se do pressuposto de que, para sua materialização, a unidade do estado depende da construção de unidade linguística, de um saber sobre esta língua e de meios para disseminá-la (escolas e seus currículos, por exemplo), a gramatização da língua se torna imprescindível na medida em que a gramática, enquanto objeto histórico, presta-se à construção e representação da unidade e identidade que mantêm a coesão entre língua, nação e estado.

A distinção entre o sujeito brasileiro e o sujeito português, bem como a legitimação da relação do brasileiro com a escrita de sua língua ocorrem no fim do século XIX por meio da elaboração de gramáticas do português do Brasil empreendidas in loco. A partir do momento em que se tem a Língua Portuguesa do Brasil e uma gramática desta língua, têm-se legitimados o sujeito brasileiro e a nação brasileira. Mais do que conter um saber sobre a língua nacional, a gramatização de uma língua constitui o sujeito nacional na medida em que a individualização do país se relaciona intrinsecamente à individualização de seu sujeito político e social.

A fase inicial do processo que levou à individualização da língua portuguesa no território que viria a constituir o Brasil se estende entre o início da colonização (1530) até a desistência dos holandeses de se estabelecerem na América Portuguesa (1654). Durante este período, praticava-se na colônia, além do português e do holandês, centenas de línguas e dialetos indígenas distribuídos entre 94 famílias pertencentes a 40 troncos linguísticos, além das línguas gerais.

Entre a partida dos holandeses e a chegada da família real portuguesa (1808), transcorreu um período marcado pela ascensão da língua portuguesa. Sem a concorrência da língua holandesa, a língua dos colonizadores suplantou as línguas indígenas e a língua geral de cada localidade. Isso foi facilitado por vários instrumentos, dentre os quais, o Édito dos Índios, que proibiu o uso das línguas de origem indígena. Foi neste contexto que a língua portuguesa – uma língua portuguesa já diferente da de Portugal – tornou-se a língua oficial do Estado Português estabelecido na América e foi se firmando como língua mais falada na colônia.

No início do século XIX, existia um povo que se pode chamar brasileiro e uma língua portuguesa que apresenta diferenças em relação à língua de Portugal, mas não a expressão, em obras concretas, de uma consciência disso.

É de 1835 a publicação do Compêndio da gramática da língua nacional, de Antônio Álvares Pereira Coruja, considerada obra inaugural dos estudos de gramática no Brasil. Coruja teria sido responsável também pelo início dos estudos sobre dialetos no Brasil ao publicar, em 1852, Coleção de vocábulos e frases usados na província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. Assim, temos que recuar para 1835 o reconhecimento de características próprias – e esforço no sentido de demarcá-las – a uma língua portuguesa brasileira e, por extensão, de um povo que a fala.

Neste contexto, gramatizar o português do Brasil representava mais do que uma atitude restrita ao campo linguístico; tratava-se de uma atitude política uma vez que, ao se tornarem autores de gramáticas, os brasileiros asseguram para si a autoridade sobre a língua portuguesa do Brasil e uma posição de destaque intelectual e em relação às especificidades do português no Brasil.

Em 1853, José Feliciano de Castilho escreveu uma carta a Antônio de Meneses Vasconcelos Drummond, ministro do Brasil em Lisboa, relatando o fracasso da tentativa de fazer com que sua gramática – o Método Castilho (1850) – fosse adotada no Brasil. No mesmo ano, ele escreve a D. Pedro II pedindo apoio para a adoção de sua cartilha na ex-colônia e, em 1857, dedica sua quarta edição ao Império do Brasil. Tais episódios demonstram a resistência nascente não Brasil à língua portuguesa importada de Portugal – resistência que tomaria forma em 1857, com a publicação de Vocabulário brasileiro para servir de complemento aos dicionários de língua portuguesa, de autoria de Costa Rubim.

A despeito da consciência, que já se pode chamar brasileira, da diferença entre a língua de Portugal e a do Brasil, os portugueses parecem ignorar a diferença como marca de uma independência linguística e insistem em criticá-la, considerando-a “desvio da norma culta”, ou seja, erro. Corroborando a resistência dos portugueses em relação à brasileirização da língua portuguesa, em 1870, encontramos o português Pinheiro Chagas criticando os neologismos e certas estruturas sintáticas utilizados por José de Alencar em Iracema. Em 1879-1880, é a vez de Camilo Castelo Branco implicar com o português de Carlos de Laet. Ainda em 1880, Antônio Joaquim de Macedo Soares publica seus estudos da lexicografia do português do Brasil. Logo após, em 1881, Júlio Ribeiro publica sua Gramática portuguesa, marcada pelo distanciamento em relação às gramáticas até então produzidas em Portugal.

A partir da produção de obras literárias sobre topos locais e em língua local – o português brasileiro –, começamos a divisar a gestação do Brasil, que só irá nascer, de fato, quando apresentado – ou, antes, representado – perante os demais estados-nações por sua literatura. A literatura nacional – ainda que apenas pretensamente – nasceria com as obras de José de Alencar. Como parte de seu projeto de retratar as diversas regiões que então formavam o Brasil, ele criou um novo estilo de linguagem ao adequá-la aos temas e aproximá-la do modo brasileiro de falar. Assim, começou a colocar em prática a independência estética em relação a Portugal. Embora a linguagem por ele empregada tenha sido considerada afetada, cabe-lhe o mérito de ter tocado em um ponto nevrálgico – o fato de que não bastava ter uma literatura sobre temas nacionais; era preciso que ela fosse escrita em língua nacional.

Com o romantismo, nasceria não apenas uma linguagem literária tipicamente brasileira, mas também a crítica literária brasileira e a discussão em torno da autonomia literária. Quanto ao questionamento da existência factual de uma literatura brasileira, havia aqueles que defendiam a impossibilidade de haver duas literaturas dentro da mesma língua – estes ainda não reconheciam a distinção entre o português do Brasil e o de Portugal –; outro grupo que, partindo de critérios históricos e, por vezes, políticos, afirmava que a literatura praticada no Brasil a partir da independência era, obviamente, brasileira e, por fim, um terceiro grupo, dos mais radicais e vitoriosos (os primeiros românticos), que afirmava que o Brasil desde sempre tivera uma literatura própria.

O primeiro dicionário completo produzido no Brasil data de 1888, como resultado dos estudos de lexicografia de Soares: Dicionário brasileiro da língua portuguesa. O lançamento de História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero, data do mesmo ano. Ao incluir a produção do século XIX, esta obra historiográfica dá nitidez à tradição de uma literatura brasileira, assim como Sílvio Romero dá voz à intenção de construir a brasilidade, definindo o que passaria a ser a nacionalidade e a literatura brasileira – não apenas por meio do estabelecimento de seu cânone, mas também por sua interpretação coerente com o zeitgeist.

Desde então, muitos arranjos ainda se fizeram necessários até que, em 20 de julho de 1897, a Academia Brasileira de Letras (ABL)[1] fosse oficialmente fundada no Rio de Janeiro com o objetivo de cultivar nossa língua e literatura nacionais por meio da manutenção da tradição. Neste sentido, pronunciou-se Machado de Assis no discurso inaugural: “o batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloquência nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles o transmitam aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira.”[2]

 A eleição do cineasta carioca Cacá Diegues, ocorrida em 30 de agosto de 2018 para preencher o espaço que o falecimento do cineasta paulista Nelson Pereira dos Santos deixou na sétima cadeira, dedicada a Euclides da Cunha, visa justamente à continuidade da tradição de zelar por nossa língua e sua expressão, inclusive por meio da Sétima Arte, conforme coubera a seu predecessor.

 Artigo também disponível aqui

Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 

 


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