3.1.21

O "make it new" segundo Haroldo de Campos

 



Dra. Vanete Santana-Dezmann

Dr. John Milton

 Tradução em Revista

Introdução


Haroldo de Campos pode ser considerado um verdadeiro agente de Tradução e um dos principais teóricos da tradução do século XX por várias razões:

 

ele transformou a tradução em uma atividade central no universo literário do Brasil; suas traduções introduziram um grande número de autores anteriormente desconhecidos para o público brasileiro; ele exerceu considerável influência sobre as atitudes em relação à tradução; apresentou uma teoria complexa da tradução que enfatiza os aspectos visuais e auditivos da tradução literária; determinou mudanças no cânone brasileiro que têm provocado debates vitais sobre a posição da literatura no Brasil e da literatura brasileira no contexto mundial. (........).

 

Ao lado de seu irmão, Augusto de Campos, ele tornou a tradução uma das principais atividades literárias do Brasil, além de lhe conferir “respeitabilidade” e prestígio nos âmbitos literário e acadêmico, bem como torná-la uma atividade comercialmente lucrativa, combinando com sucesso a teoria à prática de tradução.

Os conceitos de tradução de Haroldo de Campos podem ser depreendidos a partir da análise de seu projeto de tradução, apresentado paulatinamente por meio de seus artigos, de sua própria prática de tradução e das notas, prefácios e pós-escritos que acompanham os resultados dessa prática.

Na fase inicial de suas reflexões sobre tradução, marcada pelos artigos publicados no final da década de 50 e início da seguinte, ele apresenta o ato de traduzir como um processo de recriação permeado por uma postura crítica em relação ao cânone literário então reconhecido. Tal concepção é consolidada pelos artigos publicados ao longo dos anos 60 e início dos 70, quando suas reflexões entram em uma nova fase em que a concepção de tradução como recriação é aprofundada e ele passa a denominá-la transcriação. Posteriormente, sua percepção do poder de criação poética por meio da tradução se torna mais aguçada e ele passa a apresentar a tradução como um ato de transgressão. A partir do final dos anos 80, ele aprofunda sua concepção de que a tradução é um ato de transgressão.

De modo geral, podemos afirmar que Haroldo de Campos concebe a tradução basicamente como uma operação por meio da qual o tradutor cria, em sua língua e cultura, obras que já foram criadas na língua e cultura do texto de partida − daí o termo “recriação”. Paulatinamente, seu projeto de criação por meio da tradução granjeia autonomia suficiente para que, por fim, o tradutor assuma, para Haroldo de Campos, a liberdade de operar sobre o texto que traduz as transformações determinadas por sua própria constituição enquanto indivíduo social − integrado por uma cultura[2] diferente da cultura em que o texto de partida foi concebido.

A seguir, apresentamos o primeiro desses três estágios de desenvolvimento de sua concepção de tradução que introduzimos acima, ou seja, a concepção de tradução como “recriação”.

 

1. Tradução como “recriação”


O projeto de tradução como “recriação” foi apresentado por Haroldo de Campos em seus artigos publicados em revistas e jornais entre 1957 e 1963, à medida que era delineado.

Em “Panorama em português” (1957/2001), seu primeiro artigo sobre tradução publicado, Haroldo de Campos se centra nas especificidades linguísticas de Finnegans Wake, que, segundo ele, demandam “esforço paralelo de reinvenção minuciosa” (ibid., p. 27), aproximando o processo de tradução do processo de criação (cf. ibid., p. 27-30). Daí a origem do termo “recriação” por ele adotado para definir seu processo de tradução, alicerçado sobre a síntese, implicando valorização do haicai no que este tem de mais genuíno (cf. 1958/2010, p. 58, 59). A “recriação”, por meio da aglutinação dos verbos “saltar” e “tombar”, da impressão que o termo composto japonês tobikomu (saltar-entrar) lhe causara resultou em “saltombar”. Na reprodução gráfica, para destacar a presença dos dois verbos, recorreu ao apóstrofo: salt’tombar − recurso que credita a E. E.  Cummings (cf. ibid., p. 62). Assim, percebemos que a criação de vocábulos e seu arranjo gráfico-espacial são recursos importantes de seu processo de recriação poética (cf. 1960a/1976a, p. 127). Com relação à recriação de Finnegans Wake, Haroldo de Campos se utiliza de palavras compostas, como James Joyce fizera (cf. cf. 1958/2010, p. 62), e verbos aglutinados justamente em função da síntese que almejava.

Além da síntese, Haroldo de Campos se preocupa em manter a equivalência − no que concerne à “recriação” do que chama “tônus do original” − entre texto de partida e texto de chegada, tanto que, ao lado do princípio de “rejeição dos modos de dizer que alonguem demasiadamente o verso traduzido”, encontram-se os princípios de “concentração ao máximo do texto português em equivalência ao original” e “respeito à empostação do segmento de poema considerado” (cf. H. de Campos, 1960b, p. 151).

O resultado final dessa preocupação com a equivalência é, como se pode presumir, a “recriação” do texto de partida − segundo ele, exigida, sobretudo, na tradução de textos poéticos: “traduzir poesia há de ser criar-re-criar” (H. de Campos, 1961/1976b, p. 43). Logo, para Haroldo de Campos, a tradução de poesia envolve um processo de recriação do “tônus” que ele enxerga no poema como um todo − forma e conteúdo −, composto, inclusive, pela sonoridade das palavras. Sua tradução seria, então, perpassada mais pelos sentidos − que considera responsáveis por captar as impressões causadas pelo “tônus” – do que pela razão – considerada a responsável primordial pela atribuição dos sentidos às palavras que compõem o poema.

Para Haroldo de Campos, nessa sua “despreocupação com a literaridade” e interesse pelo que “foge à letra”, repousaria o caráter inovador de sua proposta de tradução. Literaridade é por ele definida como “sentido pontual das palavras”, enquanto que “tônus” seria a “atmosfera fonossemântica” (cf. 1960d/1997, p. 121). Logo, a novidade apresentada por Haroldo de Campos está não em fugir da busca pela equivalência ou fidelidade, criticada pelas concepções pós-estruturalistas de tradução, mas sim em tentar ser fiel às impressões que o poema a ser traduzido nele suscita – especificamente neste ponto, Haroldo de Campos apresenta caráter pós-estruturalista uma vez que não demonstra preocupação com qualquer tipo de fidelidade ao texto de partida ou a seu autor.

O artigo “Da tradução como criação e como crítica” (1963/2010), além de explicitar as concepções de linguagem que permeariam seus artigos posteriores, merece destaque também como texto fundador de sua concepção de tradução como “recriação”, que tem como paradigma a prática de tradução de Manuel Odorico Mendes (1799-1864)[3] e, como base, a teoria de tradução de Ezra Pound (1885-1972) (cf. H. Campos, 1958/2010, p. 60) e as reflexões sobre tradução de Albercht Fabri e Max Bense (1910-1990). Trata-se de um de seus mais influentes ensaios e primeira tentativa de pleno direito de teorizar sua extensa e intensa prática de tradução. As ideias principais deste estudo fundamental, posteriormente desenvolvido e aperfeiçoado, manter-se-iam ao longo de toda sua obra (cf. Nóbrega e Milton, no prelo, p. 257-258).

 

2. A influência de Fabri e Bense: a impossibilidade de tradução contornada pela “recriação”


Em “Da tradução como criação e como crítica” (1963/2010), Haroldo de Campos se serve das concepções de Bense – que remonta à semiótica de C. S. Peirce – e de Fabri para legitimar sua proposta de recriação como solução para a intraduzibilidade que ambos atribuem aos textos poéticos.

Partindo do pressuposto de que a tradução se assentaria sobre a “possibilidade de se separar sentido e palavra” (ibid., p. 32), ou seja, significado e significante, Fabri considera a poesia intraduzível. A “sentença absoluta” por ele postulada seria, de acordo com Haroldo de Campos, a sentença “perfeita” porquanto seu conteúdo é sua própria estrutura. Bense a considera intraduzível devido ao que denomina “fragilidade” da “informação estética”. Esta, de acordo com Haroldo de Campos, estaria submetida à forma: “a informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista” (ibid., p. 33). Para Fabri e Bense, os textos “criativos” – definidos como aqueles que apresentam o elemento estético como característica intrínseca – seriam, pois, intraduzíveis. Se, em um dado texto, o “sentido” não pode ser separado da “palavra” – de acordo com Fabri – e se a “informação estética” se mescla às “informações” “documentária” e “semântica” – de acordo com Bense –, como postulam acontecer nos textos poéticos, sua tradução é, a priori, impossível.

Nas palavras de Haroldo de Campos, mesmo uma simples alteração na sequência dos signos de um texto “criativo” “perturbaria sua realização estética” (cf. ibid., p. 33). Ele reconhece na distinção que Fabri e Bense estabelecem entre significados “comuns” e “estéticos” sua própria concepção de linguagem e se vale de tal distinção para justificar sua proposta de “recriação”, a qual o leva a se voltar para a tradução dos aspectos “materiais” do signo (ibid., p. 35). Ao valorizar mais o significante do que o significado, sua proposta de “recriação”, que ele define como paralela, autônoma e, simultaneamente, recíproca, aproxima-se do concretismo: “Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (...). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora.” (ibid, p. 35).

A “recriação”, apresentada por Haroldo de Campos como opção à tradução literal (cf. ibid., p. 35), propõe-se a criar, na língua do tradutor, uma informação estética autônoma em relação à do texto de partida, conectada a este pelo     que Haroldo de Campos considerou uma “relação de isomorfia” (cf. ibid., p. 34). Na definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, isomorfia, termo técnico da área de cristalografia, trata-se do fenômeno apresentado por substâncias diferentes que, a despeito de suas diferenças, cristalizadas em um mesmo sistema, apresentam mesma disposição e orientação dos átomos, das moléculas e dos eventuais íons. Metaforicamente, então, a “recriação” de Haroldo de Campos teria como objetivo reproduzir a mesma configuração material do signo, da sintaxe e do ritmo identificada no texto de partida, utilizando-se, para tanto, de diferentes materiais estéticos. Assim, as “informações estéticas” contidas na “recriação” são diferentes, enquanto linguagem, das contidas no texto de partida, mas, uma vez que se encontram conectadas isomorficamente, cristalizam-se no interior de um mesmo sistema linguístico (cf. ibid, p. 34). Ou seja, o texto de partida e sua “recriação” seriam independentes em termos de “informação estética” (cf. 1985/1987, p. 59), cabendo ao recriador reproduzir – isomorficamente – os aspectos “estéticos” do texto poético.

Graças à possibilidade da “recriação” – por meio da isomorfia[4] – do texto de partida e à correspondência biunívoca que ela estabelece entre texto de partida e texto de chegada, seria possível tornar este um outro mesmo texto em relação àquele. Segundo Haroldo de Campos, o emprego da isomorfia envolve a “dialética do diferente e do mesmo” (cf. 1986/1994, p. 91). Por exemplo, em Finnegans Wake, ele procura criar uma sobreposição na esfera do conteúdo e da forma:

 

No Finnegans abole-se o dualismo fundo-forma, em prol de uma dialética perene de conteúdo-e-continente, de um onipresente isomorfismo: se o enredo é fluvial, nomes de rios se imbricam nos vocábulos, criando um circuito reversível de reflexos do nível temático ao nível formal. Para dar um só exemplo: no fragmento 3 (Nuvoltta), quando a menina-nuvem volta ao céu, sobe pelos balaústres (“banisters”) de uma escada imaginária; essa ascensão celeste é apresentada ao leitor sob a forma inaudita de um ideograma onde balaústres e astros se combinam: “baluastros” (“banistars”). (H. de Campos, 1957/2001, p. 28)

 

Ou seja, o “banistars” de Joyce, vocábulo híbrido formado pela fusão de banisters (balaústres) com stars (estrelas, astros), é recriada por Haroldo de Campos por meio da fusão dos mesmos vocábulos, traduzidos, que resultam no vocábulo híbrido “baluastros”. Estabelece-se, assim, a relação isomórfica com o texto de partida.

A isomorfia proposta por Haroldo de Campos também se encontra na própria poesia concreta na media em que a seleção de um signo é determinada pela sua possibilidade de melhor representar o objeto que designa (cf. Campos, Pignatari & Campos, 1965/1987, p. 48 e 75). Por exemplo, em sua recriação de “Rime Petrose”, de Dante Alighieri, intitulada “Rimas Pedrosas”, Haroldo de Campos procura correspondência entre a forma e o conteúdo. Por isso, segundo ele mesmo, utiliza uma linguagem áspera para descrever a “dama áspera”: “a dama empedernida se converte no poema pétreo; o tema passa a ser a reificação, a coisificação do poema enquanto sistema de signos” (H. de Campos, 1965/1968, p. 63).

Uma operação tão racional quanto a seleção de palavras – no sentido de “arquitetada com vistas a alcançar determinados objetivos” – proposta por Haroldo de Campos implica, necessariamente, no que ele denominou anti-intuitivismo. Essa valorização da racionalidade e objetividade já havia se delineado em sua teorização sobre a poesia concreta, em que a apresenta como reação ao lirismo e à inspiração (cf. Campos, Pignatari & Campos, 1965/1987, p. 57 e 97 a 103), e se estende a suas reflexões sobre tradução. As metáforas que ele usa para se referir a termos relativos à tradução a demonstram – por exemplo, “produto acabado numa língua estranha” em lugar de texto de partida; “máquina da criação” em lugar de tradutor e “desmontar e remontar o produto” em lugar de traduzir (cf. H. de Campos, 1963/2010, p. 43). Ela também pode ser atestada pela atenção que Haroldo de Campos presta às teorias da composição desenvolvidas por Edgar Allan Poe e por Vladimir Mayakóvsky ao traduzir poemas de ambos. Haroldo de Campos afirma ter se baseado em “The philosophy of composition” (A filosofia da composição), em que Edgar Allan Poe se propõe a explicar seu processo de composição do poema “The Raven” (O corvo), para recriar sua última estrofe (cf. 1971/1976c, p. 36). Da mesma forma, afirma ter se baseado em “Como fazer versos?”, em que Mayakóvsky explicita o processo de elaboração de seu poema “A Sierguéi Iessiênin” para recriá-lo (cf. 1961/1976b).

 

3. A influência de Ezra Pound: crítica via tradução ou a “tradução como crítica”


A partir do axioma segundo o qual a poesia é intraduzível, uma vez que a forma e conteúdo não podem ser separados sem implicar perda de informação estética, conforme as conclusões de Bense e Fabri acima apresentadas, Haroldo de Campos sugere que justamente essa impossibilidade de tradução implicaria a possibilidade de recriação dos textos poéticos. A “transcriação” por ele proposta refuta a dicotomia forma/conteúdo para se centrar na forma poética do texto, ou seja, sua configuração fonossemântica, visando ao que até então fora tido como impossível: a preservação da forma do texto poético, por meio da qual os sentidos são construídos. Logo, para Haroldo de Campos, seria justamente a dificuldade extra apresentada pelo texto poético – o arranjo complexo dos elementos formais e semânticos – que, contrariamente à crença do senso comum, torna-o ainda mais traduzível. Percebe-se, então, que o conceito de “recriação” de Haroldo de Campos não pressupõe a livre adaptação do texto de partida, mas, ao contrário, extrema fidelidade ao mesmo. Nesse contexto, criatividade implica a capacidade de encontrar soluções no âmbito semiótico do poema, e não fora dele. É por isso que, desde o início de sua atividade teórica, Haroldo de Campos rejeita a visão segundo a qual a tradução seria um produto de qualidade inferior e o tradutor um servo do autor ou simples reprodutor de significados. Para Haroldo de Campos, o tradutor é um recriador e crítico na medida em que, ao escolher os textos que merecem ser traduzido, constrói o cânone literário. É neste ponto que sua concepção de tradução se aproxima da concepção de Ezra Pound de tradução como criação e como crítica (cf. Nóbrega e Milton, no prelo, p. 259). Mas Haroldo de Campos vai além ao salientar que a tradução como crítica implica também uma crítica da tradução, uma vez que somente as traduções capazes de executar a reconfiguração radical do som e significados são criativas – no sentido de produtoras de significados novos e relevantes.

Como marca indelével da influência de Pound sobre Haroldo de Campos, encontramos o “método ideogrâmico”, ou seja, a tentativa de reformar a poética ocidental por meio das representações visuais da língua chinesa, apresentado no maanifesto “Plano piloto para a poesia concreta”, inicialmente publicado na revista Noigrandes em 1958  (cf. H. de Campos et al., 1958/1987).

Retomando o artigo “Da tradução como criação e como crítica”, encontramos Haroldo de Campos afirmando que Odorico Mendes teria sido “o primeiro a propor e a praticar com empenho aquilo que se poderia chamar de uma verdadeira teoria de tradução” (H. de Campos, 1963/2010, p. 38). Além disso, Haroldo de Campos afirma que as traduções de Mendes são inovadoras e paradigmáticas uma vez que sintetizariam o texto de partida e se utilizariam da transposição de sua “vivência”; da “interpolação” – incorporação de versos de outros poetas ao texto traduzido – e dos “compósitos” – termo utilizado por Haroldo de Campos para nomear o procedimento que Odorico Mendes emprega para reproduzir as “metáforas fixas” e epítetos homéricos (cf. ibid., p. 39-42).

Pound, por sua vez, define o ato de traduzir como “imaginar a cena e o evento” que se supõe estarem presentes no texto de partida, deixando as palavras que o constituem em segundo plano (cf. 1950, p. 271). Como, para Pound, a tradução envolve imaginação e criação, Pound a concebe como um trabalho poético. Além disso, considera que cabe ao tradutor recriar também as relações entre os textos clássicos e o presente (cf. Gentzler, 1993, p. 25), seguindo o lema “make it new”, devido ao qual Haroldo de Campos lhe atribui a capacidade de exercer o que denomina “culturmorfologia” – ou, conforme sua própria explicação,transformação qualitativa de cultura” (cf. H. de Campos, 1960c, p. 8).

Ao escolher traduzir apenas autores que, segundo sua concepção, foram inovadores (cf. Pound, 1929/1968, p. 27), Pound acaba por estabelecer certa revisão do cânone literário, conforme vimos acima. Seu paideuma, marcado pela explicitação do que considera relevante do passado literário (cf. 1934/1995; 1964; 1968), exerce forte influência sobre as escolhas de Haroldo de Campos, cujo lema passa a ser “Dar nova vida ao passado literário válido via tradução” (H. de Campos, 1963/2010, p. 36). Por meio da escolha do que traduzir, Haroldo de Campos pretendia construir uma tradição literária nos moldes de Pound (cf. 1960c, p. 7).

Segundo Pound, os poemas mais conhecidos pela crítica não seriam, necessariamente, os melhores, pois aconteceria, por vezes, de “bons escritores” serem desconsiderados por um determinado cânone literário (cf. 1934a/1995, p. 37). Paralelamente, a manutenção no cânone de obras “que têm sido consideradas válidas há muito tempo” seria responsável pela falsa concepção de que, para ser considerada boa, uma obra deva ser, necessariamente, “chata” (cf., ibid, p. 21). Por isso, apresenta seu próprio cânone, relacionando o que considera o mínimo indispensável “para se saber o valor de um novo livro” (ibid., p. 44). Desse modo, rompe com o cânone tradicionalmente aceito, conforme já observamos acima, e propõe uma nova tradição, que atualiza o clássico por meio da tradução. É nesse sentido que Haroldo de Campos identifica a tradução, para Pound, com uma forma de crítica, inclusive porque o processo tradutório implicaria leitura aprofundada e crítica do texto.

Pound atribui à tradução, enquanto crítica, as funções de eliminar as repetições e organizar o conhecimento de modo a torná-lo mais acessível (cf. 1934b/1968b, p. 74), favorecendo, por meio da síntese que opera, a economia de tempo. Logo, a concepção de Haroldo de Campos de tradução enquanto crítica envolve os conceitos de seleção e escolha – fundamentais à sua teorização, pois, ao escolher o que traduzir, estabelece um cânone no interior do universo literário nacional. Assim, pode-se considerar que o processo tradutório define a formação do cânone. Ao se atribuir relevância à escolha do texto a ser traduzido, durante o próprio processo de escolha, já estaria em curso certa operação de crítica (cf. H. de Campos, 1963/2010, p. 44).

Tal como Pound, que pretendia colocar ao alcance dos poetas iniciantes e do público leitor de poesia certo “repertório [...] de produtos poéticos básicos, reconsiderados e vivificados” (ibid., p. 36), Haroldo de Campos objetiva a instauração, por meio de seu projeto de tradução, de uma “pedagogia” (cf. ibid., p. 44). Segundo ele, dentre as principais consequências de sua concepção de tradução, encontra-se a formulação de uma pedagogia “fecunda e estimulante” (cf. ibid., p. 44) por meio da qual uma nova tradição literária atualizada – composta por autores “reconsiderados” cuja obra tenha se tornado objeto de releituras propiciadas pela tradução – seria disponibilizada.

Ao conceber a tradução como crítica, Haroldo de Campos se atribui a tarefa de educar o gosto literário do leitor, oferecendo-lhe um cânone próprio, constituído por obras devidamente recriadas, ou seja, seu projeto pedagógico se relaciona à criação de uma tradição de leitura que valoriza e reconhece o que ele seleciona para ser valorizado e reconhecido. Nesse sentido, suas traduções assumem autoridade jamais alcançada antes, chegando aos ineditismos de seu nome ser apresentado na capa do livro e o fato de ter sido ele o tradutor determinar o sucesso da obra.

Ao teorizar sobre tradução, Pound sentiu necessidade de classificar as obras poéticas em três diferentes categorias: a melopeia seria o trabalho executado no nível da propriedade musical das palavras, podendo, portanto, ser traduzida quase por completo; a fanopeia, no nível da combinação de imagens que as palavras podem criar e seria quase intraduzível e a logopeia, por sua vez, no nível dos sentidos inusitados que as palavras podem assumir e seria totalmente intraduzível (cf. 1929/l968a, p. 25). Haroldo de Campos se serve dessa teoria, utilizando inclusive os termos criados por Pound. Por exemplo, a propósito de sua tradução de The Cantos, de Pound, Haroldo de Campos afirma que traduzi-los significa “recompor, em nosso idioma, senão a melopeia (efeito sonoro), pelo menos, quanto possível, a fanopeia (imagens visuais) e a logopeia (‘a dança do intelecto entre as palavras’)” (1960b, p. 151).

 

Considerações finais – o caráter pós-estruturalista do conceito de tradução como recriação de Haroldo de Campos


            Em consonância com a valorização da racionalidade e objetividade, Haroldo de Campos propõe que um especialista na língua do texto a ser traduzido trabalhe em cooperação com o “artista-criador” em sua recriação (cf. 1963/2010, p. 46 e 1961/1976b, p. 124). Esta proposta de trabalho em conjunto, que Haroldo chama de “laboratório de textos para traduções criativas” (cf. 1963/2010, p. 47), delega ao recriador – o “artista-criador”, necessariamente um escritor (poeta ou prosador) – a responsabilidade pelas características artísticas do produto final, enquanto ao especialista em língua – o “tradutor técnico” –, caberia a tarefa de “decodificar” o texto a ser recriado. Tal proposta reitera e corrobora a rígida distinção que Haroldo de Campos estabelece entre texto literário (poético e em prosa) e os demais tipos de texto.

Dadas as características especiais dos textos literários, sobretudo, da poesia, para Haroldo de Campos, traduzir poesia não é como traduzir textos de outros gêneros; trata-se de uma tarefa para poetas e literatos, ou seja, para autores. Assim, na medida em que envolve a atividade de um profissional das Letras, uma vez que demanda um trabalho de criação literária, a tradução se constitui em um processo de recriação do qual resulta um outro mesmo texto. Neste caso, da perspectiva artística, o “recriador” se encontraria no mesmo nível do “criador”, portanto, seria merecedor do mesmo status que ele. É nesta medida e na medida em que concebe a tradução como “um outro mesmo texto” em relação ao texto de partida que o conceito de “recriação” de Haroldo de Campos apresenta caráter pós-estruturalista. Porém, toda sua base, conforme vimos acima, é fundamentada em conceitos estruturalistas – por exemplo, a distinção entre sentido literal e sentido simbólico e entre texto poético (identificado como aquele que apresenta métrica, rima e palavras usadas em sentido simbólico) e texto em prosa.

 

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_____. “Date Line”. In: _____. Literary Essays of Ezra Pound. Nova York: New Directions, 1968b, p. 74-87 (1ª ed.: 1934b).

_____. ABC da literatura (Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes). 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995 (1ª ed.: 1934a).



[1] O presente artigo resulta de pesquisa patrocinada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), à qual agradecemos.

[2] Consideramos aqui língua como um dos elementos integrantes da cultura.

[3] Embora Haroldo de Campos já tivesse utilizado o termo “recriação” anteriormente, é no artigo “Da tradução como criação e como crítica” (1963/2010) que ele explicita a relação que estabelece entre a recriação e a tradução de textos criativos.

[4] Posteriormente, Haroldo substituiria o termo isomorfismo por paramorfismo. Uma vez que o termo “isomorfismo” fora empregado para denominar metaforicamente sua noção de “criações pralelas”, com o passar do tempo, Haroldo de Campos parece ter percebido que o termo grego “paramorfismo” seria mais apropriado.


Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 


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