Biblioteca Edgard Cavalheiro (Foto: Sílvio Tamaso D’Onofrio)
No município de Espírito Santo do Pinhal, localizado na região
centro-leste do estado de São Paulo, distante cerca de 200 km da
capital, repousa a interessante história de uma biblioteca
inaugurada em 13 de maio de 1951 com
um acervo inicial 5.000 livros doados pelo patrono da
biblioteca, o escritor Edgard Cavalheiro (1911-1958), natural de
Pinhal. Segundo os relatos da imprensa local, os livros faziam parte
de sua biblioteca pessoal.
Trabalhando em São Paulo desde a juventude, Cavalheiro transitou em
diversas esferas da cultura brasileira, ficando conhecido
principalmente pela publicação de Monteiro Lobato, vida e obra,
em 1955. Atuante na imprensa, nos meios literários e editoriais,
deixou uma ampla e consistente produção bibliográfica, atualmente
pouco conhecida. Cavalheiro publicou nada menos do que 58 livros,
três traduções e cerca de 900 artigos em jornais e revistas. Entre
suas obras de destaque se encontram, além da primeira biografia do
criador do Sítio do Picapau Amarelo, as biografias dos poetas
Fagundes Varela e Federico Garcia Lorca. Também organizou um volume
intitulado Testamento de uma Geração (1944),
livro que colige depoimentos de intelectuais maduros sobre suas
trajetórias e perspectivas. Além disso, publicou importantes
estudos sobre o romantismo e o conto literário no Brasil e, ainda,
sobre o estilo de escrita biográfica. No segmento editorial,
Cavalheiro liderou o departamento comercial de duas das principais
casas editoras do Brasil, a Livraria Martins e a Livraria do Globo.
Participou da criação da Associação Brasileira de Escritores e da
Câmara Brasileira do Livro e foi o responsável pela criação de um
dos prêmios literários de maior prestígio ainda
hoje no Brasil, o Jabuti.
No auge de sua atividade intelectual, com
nove obras no prelo, Cavalheiro faleceu em São Paulo em 1958, com
apenas 46 anos de idade. Cerca de meio século depois, o então
estudante do curso de Letras Sílvio Tamaso D’Onofrio decide
pesquisar sua trajetória pessoal e intelectual. Ingressando na
pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP), Sílvio dedicou
seu mestrado exclusivamente ao estudo de Cavalheiro e sua produção
e, no doutorado, concluído em 2017, estudou a atuação de um grupo
de intelectuais e escritores da São Paulo dos anos 1940, entre os
quais Cavalheiro se encontrava.
Neste momento em que as flores e cores recuperam seu vigor na
primavera brasileira e em que o céu se cobre de vermelho no outono
alemão, Silvio nos traz um pouquinho da história da Biblioteca
Edgard Cavalheiro, em cuja manutenção e revitalização teve
participação ativa nos últimos anos.
Vamos à entrevista!
Biblioteca Edgard Cavalheiro (Foto: Sílvio Tamaso D’Onofrio)
Silvio, de onde surgiu seu interesse por Edgard Cavalheiro?
Por volta de 2007, aproximando-me do final da minha graduação em
Letras e já tendendo a iniciar um mestrado, comecei a procurar por
um assunto interessante para desenvolver uma pós-graduação. Como
sempre gostei da minha terra natal, busquei conhecer quem eram os
escritores meus conterrâneos, para ver se daí tirava algum nome de
autor ou obra, personagem ou ideia que pudesse estudar. Eis que
surgem muito claros, à minha frente, dois nomes. O primeiro deles
era Sebastião Leme da Silveira Cintra, o famoso cardeal Leme
(1882-1942), que havia sido arcebispo do Rio de Janeiro e foi
importante em vários aspectos, não apenas no âmbito religioso. Dom
Leme escreveu, salvo engano, dois livros, sendo um deles a “Carta
Episcopal”, de 1916. Consultei cartas suas
no arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, mas, por algum
motivo, não me senti entusiasmado. O segundo nome era o de um certo
Edgard Cavalheiro, pessoa de quem nunca ouvira falar. Isso, de
imediato, já chamou a minha atenção. O fato de eu ser conterrâneo
de Edgard Cavalheiro e nunca ter ouvido falar dele me animou.
Surpreendeu-me eu nunca ter ouvido falar nada a seu respeito, pois
rapidamente percebi a importância dele, a quantidade de coisas que
fez, a desenvoltura em sua atuação e a rede de relacionamentos que
teve. Em seguida, percebi que não era apenas eu que não conhecia
Edgard Cavalheiro, mas muitos dos meus conterrâneos também, além
de gente da área acadêmica. E quando encontrei uma crônica do
grande estudioso e tradutor Paulo Rónai, impressa no “Estadão”
por ocasião da morte do Cavalheiro, aí o meu assunto de pesquisa se
definiu. Dizia Rónai: “[…] Grande, também, a obra dispersa de
Cavalheiro em jornais, revistas, prefácios de livros alheios. [...]
Só depois de catalogada essa herança e publicada a parte pronta
para impressão se poderá avaliar exatamente a produção desse
espírito fértil e fecundo, um dos grandes disseminadores de cultura
entre nós”. E eu peguei essa missão para mim! Meu mestrado foi
dedicado basicamente a isso: recolher essa obra dispersa e catalogar,
inclusive estive no escritório-biblioteca de Paulo Rónai, chamada
por ele de “Brilhoteca”, em Nova Fribugo-RJ, onde localizei
dedicatórias e cartas do Cavalheiro. Consagrou a minha escolha por
Edgard Cavalheiro uma afirmação dada pelo professor Antonio
Candido, em 2002, pessoa que também entrevistei em 2009, pesquisando
o Cavalheiro, ainda antes de iniciar o mestrado. Em entrevista a
Adriano Schwartz e Maurício Santana Dias, afirmou Antonio Candido:
“Me interesso não apenas pela atuação dos grupos e classes
dominantes, mas também pelos agentes anônimos e pelas personagens
humildes, que são dissolvidos nas generalizações e desaparecem
tragados pelas estatísticas. Raramente eles chamam individualmente a
atenção dos estudiosos, e nunca a dos biógrafos. Mas acho que o
estudo dos indivíduos ‘que não têm história’ pode aprofundar
o conhecimento”. Apesar de não ser exatamente uma pessoa “que
não têm história”, percebi que o Cavalheiro andava esquecido. E
minha escolha para o mestrado levou isso também em consideração,
em uma tentativa de jogar luz em um ponto menos iluminado de nossa
história literária e também cultural, afinal, todos os anos chovem
teses e dissertações na academia sobre os grandes medalhões, as
figuras já consagradas, e eu quis fugir um pouco desse esquema,
olhando para um lado mais regional, também.
Placa da Biblioteca Edgard Cavalheiro (Foto: Sílvio Tamaso D’Onofrio)
Você tem
uma atuação intensa na Biblioteca Edgard Cavalheiro,
não?! Você pode falar
um pouco sobre como ela foi montada
e sobre os momentos iniciais desse patrimônio de
Espírito Santo do Pinhal? Há documentos de fundação da
biblioteca, registros... E por acaso você tem mais detalhes desse
impulso inicial de Edgard Cavalheiro, doando seu acervo?
A Biblioteca Edgard Cavalheiro foi inaugurada nas dependências
do Esporte Clube Comercial, fundado em 1937, em um prédio belíssimo
de nossa terra chamado Palácio do Centenário. Este Palácio
foi inaugurado quando se completou um século de existência de
Espírito Santo do Pinhal, em 1948. O tio do Edgard
Cavalheiro, Adriano Ferriani Sobrinho, era um dos diretores do Clube
à época e um tio-avô meu também, Victório Tamaso, homens que
eram igualmente fundadores do clube, junto a outros descendentes da
grande colônia italiana que povoou os atuais alpes cafeeiros do sul
de Minas e centro-leste de São Paulo.
Sobre registros da fundação, há uma ou outra fotografia e algumas
notas na imprensa local e regional. A placa de identificação em
bronze, descerrada na inauguração da biblioteca, continua afixada
no local até hoje. Além disso, o discurso lido por Edgard
Cavalheiro, três páginas em papel datilografado, foi conservado
pela família do escritor e atualmente encontra-se
no Centro de Documentação Alexandre Eulalio, no Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, a
UNICAMP, para onde transferimos todo o acervo remanescente do
escritor que estava em posse de herdeiros, além de material que eu
coligi em 2017. Eu transcrevi esse discurso na íntegra na parte de
anexos da minha dissertação de mestrado. Em determinado momento,
Cavalheiro cita uma passagem do romano Marco Túlio Cícero, do
século I antes de Cristo: “Dotar uma casa de uma biblioteca, disse
o grande tribuno, é dotá-la de alma!”.
Sobre a inauguração da biblioteca, parece-me que não foi um
evento muito grandioso em termos de público, apesar da presença do
governador do estado na ocasião, Lucas Nogueira Garcez, segundo
noticiaram os jornais. Justifica-se essa presença: Edgard Cavalheiro
era nome recorrente tanto na imprensa paulista quanto na brasileira.
Até 1940, quando publicou seu primeiro livro, ele
tinha mais de 200 artigos publicados em jornais do Brasil inteiro,
incluindo dois dos principais da época, a “Folha da Manhã” e o
“O Estado de S. Paulo”.
Sílvio Tamaso D’Onofrio (Foto: Sílvio Tamaso D’Onofrio)
E a biblioteca continua da mesma maneira... no mesmo local...
nunca fechou?
Não, não… infelizmente. Mas ela continua viva. Deixe-me contar
alguns detalhes. Neste momento, no entanto, devo fazer uma ressalva:
o que relato a seguir não se pretende, de maneira alguma, ser a
história oficial da Biblioteca Edgard Cavalheiro. Conto com
muita satisfação e tentando ser o mais correto possível, além de
prezando para que minhas memórias não me traiam. Mas há pontos
onde a história pode ser afetada, de forma não deliberada, pela
minha opinião e também por informações que obtive de fontes
variadas. Portanto, já peço desculpas de antemão se passar alguma
imprecisão. Aliás, se alguém encontrar algum equívoco, ou souber
de mais coisas, tiver mais dados, sobre os assuntos em questão, por
favor, entre em contato comigo. Sou o maior interessado nessa
história e em que tudo fique esclarecido e de amplo conhecimento.
Bem, Edgard Cavalheiro faleceu apenas sete anos depois de inaugurada
a biblioteca e, por volta da década de 1980, a biblioteca “foi
desativada” - nada se sabe a esse respeito: se a sala foi fechada
ou ficou acessível, se os livros foram encaixotados, remanejados,
ninguém sabe dizer. É também nessa época que o “Comercial”,
como nos referimos ao clube lá em Pinhal, passa a apresentar sinais
mais nítidos de crise financeira e institucional. O número de
associados, que é praticamente 100% da renda que mantém o clube,
decresce ano a ano, dívidas vão sendo feitas - de toda ordem:
trabalhista, tributária etc. - , as diretorias se sucedem, o corpo
funcional também escasseia, os procedimentos se tornam cada vez mais
informais e, por que não dizer, precários.
Há cerca de 10 anos, soube que havia livros encaixotados e
remanescentes da Biblioteca Edgard Cavalheiro em ao menos três
locais diferentes: em uma outra sala no próprio Comercial, em uma
associação cultural no centro da cidade e na casa de um primo de
Edgard Cavalheiro, o Sr. Pedro Ferriani - neto do já mencionado
Adriano Ferriani Sobrinho. O total de livros nesses três locais,
pelo que apurei “de ouvir falar” - sem ver - e pelo meu
julgamento, deveria ser algo em torno de 1.000 exemplares, sendo que,
nos dois primeiros locais listados, as condições de armazenagem
eram bastante precárias. Em um desses locais, soube que houve até
descarte de exemplares - não sei quantos, quando nem quem descartou
- porque as caixas estavam em local atingido por goteiras.
Acredito que ainda nas dependências do Comercial, e também depois
disso, a Biblioteca Edgard Cavalheiro
recebeu doações de muitos livros, inclusive de enciclopédias
antigas, Barsa, por exemplo, que certamente não integravam o
acervo inicial de 1951.
Por volta de 2011 o Sr. Pedro Ferriani tornou-se diretor do
Comercial e alentou o sonho de reabrir a biblioteca. Por eu também
ter ligações familiares com o clube, além do meu mestrado sobre o
Cavalheiro, finalizado em 2012, fui convidado a ajudar e
possivelmente gerir essa nova Biblioteca Edgard Cavalheiro.
Assim, unimos os acervos remanescentes, fizemos uma seleção
criteriosa de tudo o que havia, desencaixotamos, limpamos... O Sr.
Pedro conseguiu a doação de onze estantes de uma fabricante de
móveis da cidade medindo 2 m de altura cada uma, juntei com material
meu que doei, mais um acervo selecionado de duas professoras - doação
que eu consegui de Sônia Maria de Freitas e Teresa Malatian, esta
última, professora da área de História na UNESP - e finalmente
preparamos tudo para abrir em 2014 na sala original onde havia sido
instalada a Biblioteca em 1951. Infelizmente essa nova
biblioteca nunca chegou a ser inaugurada ou aberta. Colaborou com
isso a crise financeira do Comercial, que, com o passar do tempo,
chegou ao seu ápice: o clube perdeu a autonomia sobre todo o grande
prédio onde estava a sala da biblioteca, foi embargado e o prédio
está até hoje à espera de um leilão. Não há interessados em
adquiri-lo porque uma dívida milionária foi acumulada. Com isso,
toda a biblioteca que organizamos com tanto cuidado passou a ficar em
risco de ser descartada sumariamente, com risco até de ser vendida
por peso, na reciclagem. A partir de então, apareceu um ou outro
grupo, mais ou menos com boas intenções, que conseguiu realocar
esse material, ou o que sobrou dele, e agora está disponível para
visitação e uso no centro da cidade. Algo está lá, pelo que fico
feliz. Há inclusive alguns dos antigos exemplares, possivelmente do
lote inicial de 5.000 livros, e alguns também que eram meus,
inclusive com dedicatórias a mim, entre tantos outros, e muitos
daqueles que eu havia conseguido das professoras. É uma bela
história. Anualmente há o evento literário municipal de Espírito
Santo do Pinhal, que, por essas e outras, ganhou o nome de Semana Edgard Cavalheiro. Vale a pena acompanhar! Quem vier, aproveite e
faça uma visita à Biblioteca Edgard Cavalheiro, vale a pena!
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.