“Fascinação”
– Pedro Peres
Fonte: site da Pinacoteca de São Paulo
Em 31 de agosto de 1997, o filósofo francês Alain de Botton, então colunista do jornal Folha de São Paulo, publicou um elucidativo artigo[1] com vistas a auxiliar quem se encontrasse diante de algum dilema moral premente a decidir como melhor proceder. “O utilitarismo propõe uma regra rígida – o Princípio de Utilidade – a quem tiver que determinar se uma ação é certa ou errada. O Princípio de Utilidade afirma que ‘são corretas as ações que tendem a aumentar a felicidade, e erradas aquelas que tendem a produzir o inverso da felicidade’. Enquanto promover a maior felicidade possível para o maior número possível, uma ação será sempre certa ou correta.”, escreveu ele.
Para
nossa melhor compreensão e para introduzir o conceito de “cálculo hedonístico”,
fundamental ao utilitarismo, Botton toma um exemplo simples: “É certo mentir?
As boas maneiras e as crenças religiosas dizem que não. Para um utilitarista, a
resposta depende do grau de felicidade resultante da mentira. Se uma mentirinha
sobre a comida servida num jantar puder impedir uma crise de choro na anfitriã,
então não haverá problema em mentir. Mas se o elogio servir para incentivar a
anfitriã a largar seu emprego atual e abrir um restaurante (com todas as
consequências trágicas de tal ato), então será errado mentir.”. A duração e intensidade
da felicidade auferida, bem como a quantidade de pessoas abarcadas por essa
felicidade são critérios decisivos para a tomada de decisão diante do dilema,
esclarece Botton.
Após
detalhar a filosofia moral formulada por Jeremy Bentham (1748-1832) e John
Stuart Mill (1808-1873), quando já estamos convencidos de que encontramos uma
fórmula mágica para nos safar de nossos dilemas cotidianos, Botton nos vem com
o lado sóbrio do utilitarismo: “E se a felicidade de 1 milhão de pessoas
consistir em ver os olhos de um indivíduo serem extirpados?”. Além disso, acrescenta
Botton, para tomar decisões baseados no utilitarismo, teríamos que saber
previamente os resultados de nossa ação – a fim de empreendermos o “cálculo
hedonístico” – o que, frequentemente, é muito difícil de se prever. Por fim,
aponta Botton, o utilitarismo não se atenta para os motivos que levam uma
pessoa a agir, possibilitando que pessoas sem princípios morais e éticos sejam
tomadas pelo que não são.
Após
nos conduzir aos píncaros do entusiasmo com o utilitarismo e à desilusão, o cenário
para a introdução de outra filosofia moral como panaceia para a solução e
nossos dilemas se encontra montado. Torna-se muito fácil, então, aceitarmos o
kantismo como solução – justamente o raciocínio a que Botton intencionava desde
o início nos conduzir.
O
alívio do atento leitor da Folha,
porém, não duraria nem nove meses, pois em 14 de maio de 1998 o filósofo e
economista brasileiro Eduardo Giannetti publicaria seu artigo “Ética, bom senso
e sobrevivência”[2],
estabelecendo incisivo, ainda que não intencional, contraponto ao “Entre a lei
e a felicidade” – título do artigo de Botton supracitado – ao tentar nos
introduzir em uma via menos extremista que o kantismo e o utilitarismo.
Em
um paradigmático caso de intertextualidade, dialogando até com o estilo do
texto de Botton, Giannetti nos apresenta o mesmo exemplo comezinho da mentira,
em um caso também hipotético, após nos esclarecer o que seriam os “imperativos
categóricos” da filosofia moral de Kant, ou seja, o “conjunto de obrigações e
deveres incondicionais, que deveriam ser acatados independentemente de nossas
inclinações e projetos pessoais e que em nenhuma circunstância poderiam ser
relaxados ou violados”. “Entre os imperativos categóricos kantianos”, esclarece
Giannetti, “figura o dever absoluto de não mentir, isto é, a obrigação de
respeitar sempre a norma da veracidade, ‘qualquer que seja a desvantagem que
disso decorra para si próprio ou para outra pessoa’. / Frente a essa posição,
Constant publicou um artigo contestando o caráter absoluto da norma da
veracidade e provocando Kant a se posicionar com clareza diante da seguinte
situação hipotética. Suponha que um assassino esteja ao encalço de seu amigo e
pergunte a você, sem dar margem a evasivas, se ele está ou não escondido em sua
casa. O que seria moralmente certo? Mentir para tentar salvá-lo ou dizer a
verdade e lavar as mãos? / Ao dizer a verdade, respondeu Kant, jamais se faz
algo condenável. Nada poderia escusar o mentir, mesmo que ele só traga
benefícios ao outro. O dano moral da mentira, por mais louvável que ela possa
parecer, é duplo: ela é ‘uma ofensa contra a humanidade’ e ela ‘aniquila a
dignidade’ de quem mente. ‘Ser honesto em todas as declarações, portanto, é um
decreto sagrado e imperativo da razão que não é limitado por qualquer
consideração de conveniência.’”. Os comentários de Giannetti – “Com amigos
assim, quem precisaria de inimigos?” e “Nada como um teste à queima-roupa para
revelar o caráter oculto de uma doutrina. É espantoso verificar até que ponto a
fé num sistema teórico e abstrato de ideias pode seduzir um pensador
bem-intencionado a defender posições absurdas e desumanas, para não dizer
monstruosas.” – elucidam sua crítica ao kantismo.
Após
desconstruir o kantismo, metaforizado pela “lei”, no texto de Botton, seu passo
seguinte foi desconstruir o utilitarismo, metaforizado, no texto de Botton,
pela “felicidade”. “O problema, contudo, é que, assim como o absolutismo moral
tem sérias limitações, existe também o risco de ir longe demais na direção
oposta. Onde passa um boi, passa a boiada. A partir do momento em que se admite
que é moralmente válido, por exemplo, mentir em certas ocasiões, onde
exatamente deve ficar a fronteira entre o certo, o errado e o tolerável? E quem
será o árbitro capaz de determinar com isenção os abusos e exceções à regra?”,
pondera Giannetti.
Assim,
levando-nos a trilhar os caminhos opostos até a extremidade, Giannetti nos
conduz à alternativa, que nos apresenta como sendo sempre o melhor caminho: o
antigo, bom e simples bom senso, sintomaticamente conhecido como “senso comum”,
em inglês.
Nesta
semana, veio à tona o resultado do processo movido em 2020 por Nicea Fonseca
Pereira – uma senhora de 65 anos e negra – contra a Doutora em Antropologia
Social pela Universidade de São Paulo (USP), uma senhora de 67 anos (a serem
completados no próximo ia 27), branca, escritora, Professora Sênior do
Departamento de Antropologia da mesma instituição; Imortal da Academia
Brasileira de Letras; bem relacionada à mais importante editora do Brasil, a
Companhia das Letras, e, como não poderia deixar de ser, destacada defensora
das pautas identitárias – sobretudo das mulheres negras, que ela tem promovido
e auxiliado a ganhar visibilidade, pelo que notamos aqui do outro lado das
páginas dos jornais, revistas, sites, blogs
e tudo o mais que aparece em nossas telas e timelines
– Lilia Moritz Schwarcz.
O
processo, que também envolve a editora Claro Enigma, do Grupo Companhia das Letras,
foi movido porque uma foto retratando Nicea quando criança foi usada, sem consentimento
e sem qualquer pagamento pelos direitos de publicação, na capa do livro Nem
preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira,
escrito pela Dra. Schwarcz e publicado em 2013 pela Claro Enigma. Nicea pedia
cem mil reais como compensação (ou indenização/reparo, como queiram) pelo uso
não autorizado de sua imagem.
O
caso chegou à Justiça por que, ao que podemos inferir pelas declarações da
editora, da escritora e de sua defesa – segundo as quais (1) a foto foi
retirada do Arquivo Público de São Paulo; (2) não havia identificação da
criança e a imagem não a identificava de forma clara, não havendo, portanto,
necessidade de autorização e (3) a editora e a escritora “sempre agiram de
boa-fé” e “tentaram um contato prévio com Nicea antes da judicialização do
caso, sem sucesso”[3] – é que,
já que a senhora Nicea não quis aceitar a proposta de acordo oferecida pela
escritora Schwarcz e a editora Claro Enigma, restava-lhe se calar ou, caso a
moradora de Nova Iguaçu (inferência que fazemos perante a informação de que o
processo corre na 4ª Vara Cível de Nova Iguaçu-RJ) conseguisse dinheiro
suficiente para “entrar na Justiça” ou alguém que a representasse
gratuitamente, ela que lutasse por seus direitos.
Não
temos informações sobre as bases do contato prévio tentado pela Dra. Schwarcz e
pela editora Claro Enigma, mas sabemos pela matéria publicada dia 9 último no site “Mundo Negro” que o pedido de Nicea
foi negado pelo juiz Rafael Alves e que a Nicea terá que arcar com os custos da
ação. Isso mesmo! Conforme informa o título da matéria, “Vítima de uso indevido
de imagem, mulher negra é condenada a pagar R$ 10 mil após perder ação contra
Lilia Schwarcz”.
Considerando
a boa lição de moral dada por Eduardo Giannetti, Prezada Sra. Profa. Dra.
Escritora Imortal Defensora dos Fracos e Oprimidos e, sobretudo, Defensora das
Fracas e Oprimidas Lilia Moritz Schwarcz, o que o bom senso lhe ordena fazer?
Há
uma multidão de fracos e oprimidos – da qual Nicea é parte – aguardando sua
resposta, não por meio de palavras, mas por meio de ações.
Sabemos
que a “lei” e a “justiça” estão a seu lado, doutora. Como poderiam deixar de
estar?! Sabemos também que, pelo “cálculo hedonístico”, há uma grande
quantidade de pessoas intensamente felizes com a capa do livro na estante de
suas bibliotecas e que essa felicidade por uma capa tão feliz – que, inclusive,
estabelece intertextualidade com o quadro “Fascinação”, de Pedro Peres, que se
encontra na Pinacoteca de São Paulo[4], – será tão infinita quanto o livro durar,
mas, entre a lei e a felicidade, será que daria para a senhora optar pelo bom
senso?
[1]
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs310803.htm
[2]
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq14059820.htm
[3]
De acordo com a matéria publicada no site “Mundo Negro” em 09 de dezembro de
2024. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/vitima-de-uso-indevido-de-imagem-mulher-negra-e-condenada-a-pagar-r-10-mil-apos-perder-acao-contra-lilia-schwarcz/
[4]
Disponível em: https://acervo.pinacoteca.org.br/online/ficha.aspx?ns=201000&id=12384&lang=po&IPR=805
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