Dra. Vanete Santana-Dezmann
Introdução
O intenso interesse por obras latinas manifesto na
França no final do século XV e início do seguinte levou à publicação de uma
enorme quantidade de traduções (cf. ZUBER, 1995, p. 22). O traço comum a todas
elas foi a desconsideração das características da língua francesa. Uma vez que “estrangeirizava”
a língua de chegada, os poetas da Pléiade a
tratavam como incapaz de propiciar seu desenvolvimento e, por isso,
classificavam-na como atividade literária de menor valor (cf. ibid., p. 23).
Diante da necessidade de estabelecer balizas para a
tradução que fizessem com que ela se submetesse às poucas normas que então
norteavam o francês, em 1540 Étienne Dolet publicou Manière de bien traduire
d’une langue en autre (Modo de bem traduzir de uma língua a outra).
De acordo com Joachim du Bellay, porém, a normatização do processo de tradução
era mais uma questão de política linguística do que estética. Tal como seus
companheiros da Pléiade, ele defendia
a criação de obras originalmente escritas em francês e, por isso, desprezava as
traduções (cf. BALLIU, 1995, p.12). Sendo a tradução inevitável, propunha que o
foco recaísse sobre a estética da língua para a qual se traduzia e, neste caso,
a tradução como imitação das consagradas formas clássicas seria inútil.
Assim como Dolet, Jacob Amyot (1513-1593, também
chamado Jacques Amiot) – um dos mais célebres tradutores franceses, que
traduzia inclusive obras gregas, raro à época (cf. ibid., p.13) – preconizava o
enriquecimento da língua francesa por meio da criação de palavras e frases que soassem
naturais em francês e o uso do estilo e eloquência típicos do francês também
nas obras em prosa.
A partir do Renascimento e do Humanismo, a tradução passou
a exercer relevante função na constituição das línguas nacionais europeias e na
formação de cânones literários nacionais uma vez que o acesso às obras latinas
e gregas, anteriormente franqueado apenas aos clérigos, insuflaram-lhe novos
conceitos e termos.
Na França, o início do século XVII foi marcado pela fundação
da Academia Francesa (1634) e pelos esforços
empreendidos pelos homens de Letras no sentido de depurar e codificar a língua
nacional francesa. Neste contexto, os tradutores passaram a ocupar posição de
destaque e suas traduções ajudaram na compilação dos primeiros dicionários então
publicados. Tais tradutores se encontravam, também, entre os principais
interessados nas discussões sobre aprimoramento linguístico e estilístico, que,
segundo Nicolas Perrot d’Ablancourt (1606-1664), podia ser medido a partir dos
três seguintes parâmetros: clareza, concisão e elegância. Ele próprio teria se dedicado
a escrever de modo conciso e elegante (cf. DELISLE e WOODSWORTH, 1995, p. 33). Além
disso, suas traduções ficaram conhecidas pelo expurgo de concepções e termos
que pudessem “chocar” os leitores – orgia e sodomia são exemplos de termos que
ele suprimiu dos textos gregos ao traduzi-los. Ele procurava atenuar as diferenças de
costumes constatadas entre a cultura apresentada no texto de partida e a
francesa; adaptar as regras de comportamento às normas correntes na França de
sua época e adaptar o comportamento das personagens ao que considerava
condizente com sua posição social (cf. MILTON, 1998, p. 58). Por esta razão, era
criticado e acusado de infidelidade ao texto de partida (cf. DELISLE e WOODSWORTH,
1995, p. 33).
Diante da tradução “nada fiel”, dizia-se, que M.
d’Ablancourt fizera do Diálogo, de
Lucien de Samosate, Gilles Ménage (1613-1692) teceu o seguinte comentário: “eu
a chamaria a Belle Infidèle, que era
o nome que eu havia dado, quando jovem, a uma de minhas amantes” (apud. DELISLE
e WOODSWORTH, 1995, p. 33, tradução minha). Desde então, a expressão “belle infidèle” (em português, “bela
infiel”) passou a designar as traduções que se preocupavam mais com a beleza do
texto de chegada do que com o conteúdo e estilo do texto de partida – as
“traduções livres” –, que prosperaram, sobretudo, no período compreendido entre
os anos de 1625 e 1665 e estiveram no auge entre 1640 e 1650 (cf. ZUBER, 1995,
p. V). Nesta época, a tradução foi elevada à categoria de arte e era
classificada como gênero literário. A prática de tradução empreendida por M.
d’Ablanclourt e seus seguidores acabou dando origem a uma tradição de tradução de cunho prático e filosófico que acabou
conhecida como “Belles Infidèles”
devido, justamente, ao comentário de Ménage.
O francês clássico, como o conhecemos atualmente,
foi estabelecido entre 1600 e 1660 (cf. BALLIU, 1995, p.16). A partir de então,
com a publicação da Grammaire générale et
raisonnée contenant les fondements de l'art de parler, expliqués d'une manière
claire et naturelle (Gramática geral e razoada contendo os fundamentos da
arte de falar, explicados de modo claro e natural), de Antoine Arnauld e Claude
Lancelot, tematizando a filosofia da linguagem a partir da perspectiva de René
Descartes, os tradutores de Port-Royal
passaram a dominar a cena, tornando-se mais importantes que os tradutores
integrantes da Academia Francesa. O
termo “Port-Royal” foi empregado em
referência ao mosteiro jansenista de Port-Royal-des-Champs (região em que
atualmente se encontra o vilarejo de Saint-Rémy-lès-Chevreuse, próxima a
Paris), onde eles viviam. Enquanto jansenistas, suas obras – originais, no
sentido de “próprias”, e traduções – tinham finalidade doutrinal e pedagógica,
mas se constituíam também em importantes fontes de reflexões e discussões sobre
a língua. Para eles, a arte de traduzir e a arte de escrever caminhavam lado a
lado. Traduziam, sobretudo, textos latinos do período clássico e, tal como seus
colegas da Academia, expurgavam de
suas traduções os termos e conceitos que consideravam passíveis de chocar e desvirtuar
seu público leitor.
I. A tradução, segundo a tradição Belles Infidèles
Apoiando-se nas concepções de Du Bellay, os tradutores
que acabaram por consolidar um modo de traduzir e de pensar sobre a tradução
que instauraria a tradição conhecida
como “Belles Infidèles” (BALLIU, 1995, p.12) visavam à autonomia
linguística amparada por um senso estético próprio que deveria se manifestar
inclusive em prosa, mesmo quando tivesse os modelos clássicos como inspiração.
O esteticismo exacerbado que ficou conhecido como “bom gosto”, característico
da língua francesa, passou a determinar o estilo linguístico que os textos
escritos em francês – escritos originalmente em francês ou traduzidos –
deveriam apresentar (cf. ibid., p.17). Por isso, as traduções empreendidas na
França dos séculos XVII e XVIII eram uma espécie de “imitação à distância” (cf.
ibid., p.17), determinada pela adequação ao estilo local corrente. Assim,
adaptando e recriando as obras clássicas no sentido de as tornarem agradáveis
ao público alvo, ou seja, guiando-se pelas normas do “bom gosto” dos eruditos
e, a partir de 1634, pelas regras de eloquência da Academia Francesa, os tradutores franceses construíram sua
literatura clássica. De acordo com Christian Balliu, as traduções mantinham
certa “fidelidade estilística dinâmica”
e certa “equivalência de efeitos”
(cf. ibid., p.17). Para tanto, os procedimentos tradutórios, conforme
apresentados por D’Ablancourt (apud. POPPI, 2013, p. 35), resumiam-se a: (i)
assumir não ter realizado uma “tradução
comum” (traduction régulière); (ii) apontar questões de
intraduzibilidade (peculiaridades dos termos gregos que não seriam entendidas
fora do contexto); (iii) excluir as comparações do amor (por se tratar de amor
homossexual, comum aos gregos e abominável aos costumes franceses), e (iv)
excluir os versos referentes a Homero, bem como as “velhas fábulas batidas”, os
provérbios, exemplos e comparações antiquados, pedantes e sem erudição. Ou seja,
em se tratando de tradução, havia que se considerar mais o que era preciso e
possível de se dizer em francês na França daquela época (apud. POPPI, 2013, p.
35) do que o que se identificava no texto de partida.
M. d’Ablancourt justificava os procedimentos
recomendados apontando que Terêncio, em sua tradução das comédias de Menandro,
e Cícero, em sua tradução dos Ofícios, haviam feito exatamente o mesmo.
Como argumento em defesa de seus procedimentos, comparava o texto de partida a
um belo rosto que, como sempre, contém algo desagradável e os tradutores aos
embaixadores, que devem se dobrar aos costumes dos locais onde se encontram:
Assim
como nos belos rostos há sempre algo que gostaríamos que não estivesse ali, do
mesmo modo, nos melhores autores, há passagens que convêm retocar ou
esclarecer, especialmente quando as
coisas são feitas somente para agradar; pois então não se pode suportar
o mínimo defeito, e se a delicadeza faltar nem que seja por pouco, em vez de
agradar, aborrece. [...] As diversas épocas pedem não somente palavras, mas
pensamentos diferentes; e os embaixadores têm o hábito de se vestirem à moda do
país para onde são enviados, por medo de parecerem ridículos perante aqueles
que se esforçam por agradar (apud. POPPI, 2013, p. 35).
A tradução dos clássicos se resumia, então, a usar o
texto de partida apenas como referência, adotando-se a forma cultivada no
momento da tradução e adaptando ou recriando – conforme a necessidade – a linguagem
de acordo com as regras das instituições do “bom gosto” e da Academia Francesa.
Da mesma forma, por motivos estéticos e ideológicos,
a Gramática de Port-Royal, como é
conhecida entre nós, prescrevia a depuração das obras latinas durante o
processo de tradução por meio da exclusão de elementos que se chocassem com a
cultura francesa. São célebres os expurgos
praticados por Antoine-Isaac, Barão
Silvestre de Sacy (1758-1838) em suas traduções em nome da moral, pois, considerando-se a
função pedagógica da literatura, acreditava-se que era
necessário transmitir os valores da cultura clássica aos educandos, porém seus “vícios” e “imoralidades” não
deveriam ser propagados. Assim, recomendava-se
que o texto de partida fosse totalmente adaptado às convenções da cultura da
língua de chegada, sendo considerada boa a tradução que estivesse formulada de
modo mais elegante – de acordo com tais convenções – do que o apresentado pelo
texto de partida. Os tradutores de Port-Royal, como se pode perceber, não eram
os únicos, nem foram os primeiros, a defender e a praticar a adaptação livre do
texto de partida à cultura de chegada.
Dentro da tradição
Belles Infidèles – conforme praticada
pelos “Senhores de Port-Royal” –,
coube-lhes a tarefa de estabelecer parâmetros a fim de se evitar que a cultura
francesa, tipicamente católica – como os mesmos Senhores – fosse afetada pela cultura pagã veiculada pelas obras
latinas e gregas registradas na época anterior ao cristianismo. A obras que
deveriam doutrinar e educar seus leitores, não cabia disseminar concepções tão
díspares das que defendiam aqueles que as selecionavam e traduziam.
II. Enquanto isto, do outro lado do
Reno...
O século XVIII se abre na Europa com o estado
prussiano se separando do Sacro Império Romano-Germânico. Frederico de
Brandenburgo, coroado rei da Prússia em 1701, foi sucedido por Frederico I, o
Soldado Rei, a partir de 1713. Neste ano, começava a disputa pela sucessão ao
trono da Áustria, que perduraria por oito anos, gerando as Guerras da Silésia,
que só chegariam ao fim em 1763. Ao longo deste período, a monarquia austríaca
dos Habsburgos, no comando do Sacro Império Romano-Germânico, lutou contra o
Reino da Prússia, sob a dinastia dos Hohenzollern, pelo controle da Silésia –
parte das atuais República Tcheca e Polônia que se encontra na fronteira com a
atual Alemanha. Justamente nesta época, França e Inglaterra se consolidavam
enquanto estado-nação, como resultado de um processo que começara a se delinear
ao final da Guerra dos Cem Anos (1453), no caso da França, e ao final da Guerra
das Rosas (1485), no caso da Inglaterra. Lembremo-nos que o que se convencionou
chamar Guerra dos Cem Anos envolve uma série de conflitos armados intermitentes
entre França e Inglaterra que se estenderam de 1337 a 1453, perfazendo,
portanto, cento e dezesseis anos.
O conceito de estado-nação – principal resultado
político da Revolução Capitalista gerada pela Revolução Industrial iniciada na
Inglaterra nos primórdios do século XVIII – assenta-se nos conceitos de estado
(sistema constitucional e, simultaneamente, organização que o garante;
organização constituída por políticos, burocratas e militares detentores do
poder de legislar e tributar e, por fim, ordem jurídica oriunda desta
atividade) e de nação (sociedade submetida a um destino comum e capaz de
constituir um estado – na acepção moderna – que lhe garanta segurança ou
autonomia nacional e desenvolvimento econômico). Estado-nação pode, então, ser
definido como unidade político-territorial soberana integrada por uma nação, um estado e um território
(porção geográfica delimitada que, gerida por um governo independente dos
demais, caracteriza um país)[ii],
constituindo-se na forma mais abrangente de organização político-territorial
nas sociedades capitalistas industriais. Seus dirigentes, além de objetivarem a
segurança do estado, objetivavam também ao desenvolvimento econômico e à
disseminação da educação pública (importante para a formação de mão-de-obra
qualificada) e da busca pela produtividade entre todos os integrantes do
território nacional.
Uma vez que, a partir da Revolução Industrial, definir
as fronteiras do mercado nacional passou a ser de extrema relevância, estabelecer-se
como estado-nação passou a ser fundamental para o desenvolvimento econômico. A
desunião entre os governantes territoriais do Império Germânico, porém,
postergara o processo de consolidação de um estado-nação germânico. Até os fins
do século XIX, predominava no território do Sacro Império Romano-Germânico a deutsche Kleinstaaterei, ou seja, os
pequenos estados localizados naquele território se mantinham independentes, tal
que cada um tinha sua própria legislação (Heimatgesetzgebung),
com diferentes condições para estabelecimento comercial e desempenho de
profissões; diferentes moedas – o que impedia o estabelecimento de um sistema
bancário comum –; diferentes sistemas de pesos e medidas – nenhum dos quais,
tal como suas moedas, reconhecido no mercado mundial – e limite de estadia para cidadãos oriundos de
outros estados, incluindo-se aí estados componentes do próprio território
germânico – não havia liberdade de circulação em seu interior nem mesmo para
seus cidadãos e o conceito de “cidadania alemã”, ou “cidadania germânica”,
nunca fora aventado (cf. Engels, 1888.).
Embora o embrião já se encontrasse em gestação, o
fato é que, a partir de então, a futura Alemanha perderia a preponderância
entre os estados europeus, em parte também em consequência da devastação
promovida em sua população, território e finanças pela Peste Negra (1350) e
Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).
Assim, percebemos que, a partir de uma origem comum
– Reino Franco –, os embriões da França e Alemanha cedo se separaram e se
distanciaram até o ponto em que, em meados do século XVIII, aquela se
encontrava convertida em centro cultural da Europa e Rússia e logo viria a
protagonizar uma das principais revoluções do mundo ocidental e caminhar a
passos largos para a consolidação de sua hegemonia – frustrada – na Europa,
enquanto o Império Germânico permaneceria fragmentado em diversos estados até o
final do século XIX. A estes estados germânicos, fragmentados em vários níveis,
inclusive em termos culturais, era preciso construir uma noção de identidade
nacional, que reuniria os descendentes de diferentes tribos germânicas em torno
de uma pátria comum, uma nação unificada – o Império Alemão, que só viria a se
estabelecer como estado-nação em 1871.
Vários agentes culturais se apresentaram para
cooperar no processo de construção da identidade nacional germânica e seus
momentos mais preponderantes, ocorridos ao longo dos séculos XVIII e XIX, foram
marcados pela coleta de histórias da cultura popular e enriquecimento desta
cultura por meio de traduções de obras relevantes da cultura clássica, inglesa,
francesa, italiana, espanhola, portuguesa e oriental.
III. A relação de Lutero com Dolet
e du Bellay
Conforme demonstraremos a seguir, tal como Dolet,
Martinho Lutero sentiu a necessidade de estabelecer balizas para a tradução que
fizessem com que ela se submetesse às normas, ainda que escassas, que norteavam
sua língua materna a partir do momento em que se pôs a traduzir a Bíblia e, tal
como du Bellay, logo percebeu que a normatização do processo de tradução se
define mais como uma questão de política linguística do que uma questão de estética.
Aliás, Lutero parece seguir a risca seu conselho segundo o qual o tradutor deve
priorizar a estética da língua para a qual traduz, evitando, portanto, imitar
as formas clássicas consagradas ao traduzir.
Embora Lutero não tenha criado o Hochdeutsch (alemão padrão), sua
tradução de partes da Bíblia influenciou profundamente a formação da língua nacional alemã uma vez que sua tradução acabou funcionando
como padrão de avaliação no desenvolvimento da língua nacional alemã (cf.
DELISLE e WOODSWORTH, 1995, p. 50). Ela também exerceu influência sobre a
formação de uma cultura tipicamente germânica, que acabaria transformando a
cultura ocidental por meio da expansão do protestantismo. A novidade por ela
apresentada se encontra não só na padronização da língua, mas no uso desta
língua para expressar ideias revolucionárias no interior do universo cristão –
tanto que sua tradução foi severamente atacada pelos “papistas” (termo
empregado por Lutero para denominar seus opositores).
O pedido de explicação sobre a
introdução da palavra allein (só) em
um versículo bíblico feito por um tal “honorável e distinto N.” (cf. LUTERO,
2006, p. 95) toca diretamente no ponto de confluência entre questões linguísticas
e dogmáticas da Bíblia de Lutero,
proporcionando-lhe ensejo para reafirmar um dos principais dogmas que marcam a
diferença entre o catolicismo e o protestantismo – a salvação pela fé – e apresentar
seus métodos e concepções de tradução.
Do mesmo modo, eu sabia muito bem
que em Romanos 3 não havia a palavra solum no texto latino ou grego, e não
precisavam me ensinar isso os papistas. É verdade, estas quatro letras s-o-l-a, que as cabeças de asno admiram
como as vacas a uma nova porteira, não estão no texto. Eles não vêem que isso
corresponde perfeitamente ao sentido do texto, e, quando se quer traduzir com
clareza e consistência em alemão, deve estar presente, porque eu quis falar em
alemão, não em latim nem em grego, quando me propus falar em alemão ao
traduzir. Isso, porém, é propriedade de nossa língua alemã, que, quando usada
para tratar de duas coisas, das quais uma é afirmada e outra negada, necessita
da palavra sollum-allein,
acompanhando a palavra nicht ou kein [não, nenhum]. Assim, por exemplo,
quando se diz: Der Baur bringt allein
Korn, und kein Geld [O camponês traz somente grãos e nenhum dinheiro]. Nein, ich habe wahrlich jetzt
nicht Geld, sondern allein Korn [Não, realmente agora não
tenho dinheiro, mas apenas grãos]. Ich
habe allein gegessen und noch nicht getrunken [Eu somente comi e ainda não
bebi]. Hast du allein geschrieben und
nicht durchgelesen? [Apenas escreveste e não leste?] E inúmeras formas semelhantes no
uso diário.
Se tanto a língua latina como a
grega não procedem desta forma em todos estes idiomatismos, a alemã procede
assim, e é de sua propriedade usar a palavra allein a fim de que a palavra nicht
ou kein resulte mais plena e clara.
Pois, embora eu também possa dizer: Der
Baur bringt Korn und kein Geld, assim dita, a expressão Kein Geld não soa tão plena e clara como
quando eu digo: Der Baur bringt allein
Korn und kein Geld [O camponês trouxe somente grãos e nenhum dinheiro]:
aqui a palavra allein ajuda a palavra
kein a produzir uma fala plena,
alemã, clara. Pois não se tem que perguntar às letras na língua latina como se
deve falar alemão, como fazem os asnos, mas, sim, há que se perguntar à mãe em
casa, às crianças na rua, ao homem comum no mercado, e olhá-los na boca para
ver como falam e depois traduzir; aí então eles vão entender e perceber que se
está falando em alemão com eles. (Lutero, 2006, p. 103-105)
A introdução do termo allein, que Lutero afirma se dever a uma
das características da língua alemã, deve-se, concomitantemente, ao sentido que
ele atribuiu ao que estava escrito no texto de partida (o Novo Testamento em grego) –, à leitura que ele fez e que
desencadeou o protesto contra o dogma católico da salvação pelas obras.
A princípio, Lutero era um
pregador católico como todos os demais e recebeu a mesma formação que as demais
autoridades católicas. Porém lhe interessava disponibilizar as Sagradas Escrituras para os fiéis que frequentavam
as paróquias, para que cada um pudesse fazer a sua própria leitura – a pretendida pela burguesia local, junto à qual
Lutero se colocava, deixando de ser, a partir de então, um pregador como os
demais. Com este objetivo, aprofundou-se nos estudos de grego e hebraico, além
do latim, e se pôs a traduzir partes da Bíblia
a partir dos textos anteriores à Vulgata[1].
Lutero foi a sua fonte e, compelido pelo Zeitgeist
– marcado por conflitos sociais que exigiam reformas que só chegariam ao âmbito
social se atingissem o âmbito religioso, já que há séculos a política e a religião
eram indissolúveis –, atribuiu-lhe sentidos diferentes daqueles então
intermediados pela versão latina. Daí a necessidade de uma nova tradução da Bíblia para o alemão que contemplasse
simultaneamente o modo de expressão da burguesia alemã e suas ideias anti-catolicismo.
De fato, antes de Lutero e sua Bíblia, já existia uma língua alemã
padronizada, graças, também, a traduções da Bíblia
– a tradução do Novo Testamento feita no Mosteiro de Fulda por volta do ano 820
a partir do texto latino de Ticiano datado do século II; a tradução do Livro
dos Evangelhos feita por Otfried von Weissenburg e completada em alto alemão
antigo por volta de 870 e, por fim, a tradução dos Salmos feita por Notker, o
Alemão, por volta do ano 1000 cf. (DELISLE e WOODSWORTH, 1995, p. 45). A
primeira tradução completa da Bíblia
para o alemão data de 1475. As diferenças entre estas traduções e a de Lutero
se encontram na fonte utilizada – as primeiras se basearam na Vulgata, enquanto as de Lutero remontam
aos originais em grego e hebraico –; ao alemão utilizado – cada uma foi escrita
na língua falada pela classe de maior prestígio à respectiva época – e ao
conteúdo disseminado – cada qual expressou as ideias e anseios da classe
ascendente no momento da tradução. Os resultados da tradução de Lutero foram a
Reforma Protestante, a reação antirreformista, a padronização do alemão falado
pela burguesia da região centro-oriental do Império Germânico, em ascensão
naquele momento, bem como o fortalecimento de suas ideias. Como esta classe
dominou o cenário a partir de então, seu Hochdeutsch
– tal como suas ideias – suplantou o anterior.
Em primeiro lugar, se eu doutor
Lutero, tivesse podido enganar-me de que todos os papistas juntos fossem tão
hábeis a ponto de saberem traduzir bem e corretamente um capítulo da Escritura,
então teria sido muito humilde e lhes teria solicitado ajuda e assistência para
a tradução em alemão do Novo Testamento. Mas como eu sabia e ainda posso ver
que nenhum deles sabe realmente como se deve traduzir ou falar em alemão,
poupei-me a mim e a eles um tal esforço. No entanto, percebe-se bem que eles
aprendem a falar e a escrever em alemão a partir da minha tradução e de meu
alemão, e roubam-me em muito minha língua, que até então pouco conheciam; porém
não me agradecem por isso, mas preferem a utilizar contra mim. Contudo, é com
prazer que lhes proporciono isso, pois me agrada estar ensinando a falar a meus
discípulos ingratos, que ademais são meus inimigos. (...) Contudo, gostaria de
ver um papista que se sobressaísse e traduzisse algo de uma das Epístolas de São Paulo ou de um profeta,
desde que para isso não se servisse do alemão e da tradução de Lutero; então
veríamos um alemão ou um tradução elegante, bela, admirável. Pois já vimos o embusteiro de Dresden, que se
apropriou de meu Novo Testamento (não quero mais mencionar seu nome em meus
livros; ademais, ele também tem agora seus juízes e é bem conhecido). Ele
confessa que meu alemão é suave e bom; percebeu que não podia melhorá-lo e quis
destroçá-lo. Assim, tomou meu Novo Testamento, quase palavra por palavra, da
forma como eu o compus, retirou meu prefácio, comentários e meu nome, e
acrescentou seu nome, prefácio e comentários, e desta forma vendeu meu Novo
Testamento com seu nome. (Lutero, 2006, p. 95 e 97-99)
Datam do século XVI as
primeiras gramáticas de língua alemã, dentre as quais se encontram Grammatica germanicae linguae ex Bibliis
Lutheri germanicis et aliis eius libris collecta (Gramática da língua alemã
baseada na Bíblia de Lutero e em suas outras obras conhecidas), de Johannes
Clajus (1535-1592) e Ein Teütsche
Grammatica (Uma gramática teutônica), (1534), de Valentin Ickelsamer. Daí o
alemão padrão ser visto como fruto da tradução de Lutero – o que as coloca em
relevo como meio de fixação da língua e produção e disseminação de cultura no
Império Germânico.
Se a Bíblia de Lutero pôde servir de base para a língua alemã, foi não
apenas porque empregou a língua da classe em ascensão, mas também porque as ideias
que difundia estavam historicamente conectadas com as ideias correntes à época,
demarcando uma conjunção histórica e cultural que rompe com o que havia antes.
É neste sentido que Antoine Berman afirma que há um período pré-Lutero e outro,
pós-Lutero, que não se restringiria aos aspectos político e religioso, mas se
entenderia ao aspecto literário (cf. BERMAN, 1992, p. 27) e, acrescentemos,
linguístico.
Assim, pode-se considerar que o
processo de formação da língua alemã hoje utilizada – e da cultura –
estendeu-se por mil anos, sempre se assentando na assimilação de outras
culturas, traduzidas convenientemente para manifestar os interesses locais
momentâneos.
Como se pode perceber, dentre tantas diferenças entre a tradição
tradutória francesa e a germânica, o contexto francês e germânico no século XVI
possibilitou que
IV. A planta exótica de
Schleiermacher
No início do século XIX, a Teoria Relativista da Língua, de Wilhelm von Humboldt (1767-1835),
afirmava que a língua influencia a forma de pensar, ou seja, o pensamento
depende da língua em que é expresso. Daí a necessidade premente de se fixar a
língua padrão germânica. Além disso, a existência de uma língua nacional germânica
padronizada era importante para o estabelecimento da identidade alemã, considerando-se
que a língua define a identidade de uma comunidade, constituindo-se no
principal elemento definidor de identidade cultural – somada aos demais
vínculos que criam coesão no interior de uma nação, a língua acaba por
constituir a base para a diferenciação desta nação em relação a outras e,
embora a língua, por si só, não congregue condições suficientes para a
autonomia de uma nação, sua existência é fundamental para a constituição da
nação.
De fato,
havia uma relação direta entre a impossibilidade de se constituir um
estado-nação germânico e o atraso, em relação às demais nações da Europa
Ocidental, na sistematização da língua e formação de um cânone literário no
interior o Império Germânico, uma vez que a noção de nação pressupõe a
existência de um grupo de indivíduos que compartilham elementos culturais,
dentre os quais a língua – e a literatura por meio da qual ela se estabelece –
destaca-se, e a noção de estado, por um lado, alia-se à de país, ou seja,
implica, entre vários elementos, a existência de um território delimitado geograficamente,
e, por outro, pressupõe a presença de governo próprio, leis que regulamentem as
atividades de seus cidadãos e forças armadas para defender o território, seu
governo e seu povo. Daí a relação de interdependência entre as noções de
estado, nação, pátria, língua e literatura.
Neste contexto, diferentemente do que até então se
preconizara na França, os germânicos perceberam que era melhor não adaptar o
texto de partida à língua e cultura de chegada, mantendo-se seu caráter
estrangeiro, a fim de enriquecer a cultura de chegada com novos conceitos e
novo vocabulário, que era adaptado às regras da ortografia germânica. Friedrich
Schleiermacher afirmava que a vocação germânica para a tradução fora
determinada pela própria necessidade interna – a necessidade de criar uma
cultura germânica aplanadora das diferenças internas que, para tanto, valia-se
da apropriação do que lhe era estrangeiro. Explicando-se, ele estabelece
analogia entre a necessidade do cultivo de plantas exóticas para tornar mais
rico e fecundo um solo e a necessidade de contato da língua-pátria com
elementos estrangeiros para seu florescimento e desenvolvimento. Ele mesmo já
se referira à sua língua como “nosso pobre alemão” (1813/2007, p. 256).
Mas as inovações linguísticas, advertia Schleiermacher,
deveriam ficar restritas ao âmbito da tradução. Ele acreditava que aqueles que
as usassem inadequadamente encontrariam poucos seguidores. Além disso, confiava
que, a longo prazo, o próprio “processo assimilador da língua” se incumbiria de
eliminar o que não fosse adequado a sua natureza (cf. ibid., p. 264) – a partir
de 1801, o Wörterbuch zur Erklärung und
Verdeutschung der unserer Sprache aufgedrungenen fremden Ausdrücke nach der
Verdeutschung dieser Fremdwörter (Dicionário para explicação e germanização
de nossa língua premida por expressões estrangeiras de acordo com a
germanização destas palavras estrangeiras; tradução minha), de Joachin Heinrich
Campe, passaria a auxiliar na tarefa de “assimilação do estrangeiro”.
Ao lado da política de germanização dos termos
estrangeiros que se encontravam em uso, a aceitação e adaptação do vocabulário
estrangeiro novo e a criação de termos para expressar conceitos novos à cultura
germânica advindos de outras culturas por meio da tradução foram responsáveis
pela enorme quantidade de neologismos registrados em língua germânica nos
séculos XVIII e XIX. Tal contexto teria levado Johann Wolfgang von Goethe a
expressar a seguinte máxima: “A força de uma língua não se encontra no fato de
ela rejeitar o estrangeiro, mas sim em devorá-lo!” (apud. NECKER, 1907, p. 207,
tradução minha.).
Consecutivamente, tornava-se dominante o interesse
pela literatura universal com o objetivo de ampliar a cultura germânica – daí a
importância da tradução, que, longe de ser concebida como ameaça, tornara-se fonte
de enriquecimento: “De fato, de quais línguas não temos nós os melhores
trabalhos nas mais eminentes traduções?”, perguntaria Goethe (1827/1993).
A tradução, então, chega a ser vista como instrumento
de sujeição de outros povos à língua alemã que começava a se consolidar:
Independentemente
de nossa produção, nós já atingimos um elevado patamar cultural (Bildung) graças à completa apropriação
do que nos é estrangeiro. Logo outras nações terão que aprender alemão, pois
perceberão que deste modo podem conservar em grande quantidade o aprendizado de
quase todas as outras línguas. (GOETHE, 1827/1993.)
Como a literatura disponível em língua alemã nos
séculos XVIII e XIX resultava, em grande parte, de tradução, ela se inclina a
se notabilizar como repositório da literatura mundial, como bem o notara
Goethe, demonstrando sua tendência a se constituir pela assimilação do que lhe
era estrangeiro. Neste contexto, Goethe passou a usar o termo Weltliteratur (literatura mundial) com a
acepção de obras literárias que ultrapassam as
fronteiras nacionais e regionais, tornando-se significativas para a Weltbevölkerung (população mundial). Usado pela primeira vez
por Christoph Martin Wieland, Weltliteratur
tinha o sentido de literatura para o homme
du monde ("homem do mundo" ou, em alemão, Weltmann) e com acepção comparável à de Weltkulturerbegeführt (patrimônio mundial), a partir de 1827,
quando passou a ser empregado por Goethe, Weltliteratur
assumiu a acepção de literatura criada a partir de um espírito cosmopolita,
supra-nacional. Assim, seu caráter cosmopolita lhe seria atribuído não em
virtude do público a que se destina, como o concebia Wieland, mas, sim, em
virtude do espírito cosmopolita do próprio autor. Esta
literatura mundial, acolhida pelos povos germânicos, serviria para enriquecer a
cultura nacional então em formação (Bildung)
e contribuiria para a constituição da nacionalidade alemã (Deutschheit) – causa à qual se dedicaram tanto Goethe quanto
Wieland enquanto integrantes da primeira geração pós-Guerra dos Trinta Anos que
desenvolveu um olhar crítico sobre a dominação francesa exercida no âmbito
político e cultural dos estados germânicos e, por fim, no cotidiano de seus
habitantes uma vez que a reconstrução do espaço físico, humano, cultural e intelectual
dos estados germânicos no pós-guerra se dera sob o impacto dos valores e da
cultura disseminados pela França.
Assim, no início do século XIX, quando Schleiermacher
profere em Berlim sua célebre palestra “Über
die verschiedenen Methoden des Übersetzens” (Os diferentes modos
de traduzir), a língua e a literatura germânicas – bem como os indivíduos que
as produziam e delas se serviam – já haviam se habituado a ser insufladas por
línguas, gêneros literários, concepções, conceitos e experiências advindos de
diferentes povos e culturas. Schlaeiermacher fala a uma plateia que dominava o
a língua francesa e nela se expressava tão bem quanto em sua língua materna. O
mesmo se aplica às cortes germânicas, que há muito tinham adotado a língua e a
“etiqueta” (conjunto de “bons” hábitos sociais) francesas como instrumentos
civilizatórios. Como reflexo, o povo, mesmo nos mais baixos estratos sociais,
admirava tudo que fosse oriundo da França – língua, música, literatura, moda,
costumes e valores. A partir de então, o caminho, que sempre estivera aberto
para a literatura estrangeira, tornou-se mais largo, registrando-se uma
verdadeira explosão na publicação de traduções em meados do século. Para se ter
uma ideia, em 1850, dos 326 romances publicados em línguas germânicas, 164
(50%) eram traduções – 72 títulos traduzidos do francês; 51, do inglês e, os 10
restantes, de outras línguas. Isso se explicaria, em parte, pela entrada no
mercado de editoras que, ao invés de investir na publicação luxuosa e
dispendiosa de obras para um público mais refinado, como as de Goethe e
Schiller, dedicavam-se a publicar literatura popular em formatos de baixo custo
– em sua maioria, traduções de romances populares franceses e ingleses – pelo simples
fato de serem extremamente populares. Estas editoras eram chamadas
pejorativamente de “Übersetzungsfabriken” (fábricas de tradução). Logo que leis
internacionais de proteção aos direitos autorais passaram a vigorar, ainda na
década de cinquenta, e a censura foi instituída na região de Leipzig, onde a
maioria das “fábricas de tradução” se localizava, a publicação de títulos
populares traduzidos foi reduzida, chegando a 25% dos 524 títulos de romances
publicados em 1865 (cf. BACHLEITNER, 2009, p. 425-427).
Até quase o final do século XVIII, a tradução fora
uma atividade exclusiva de literatos – independentes do sistema comercial
porquanto eram subvencionados pelo sistema eclesiástico ou por aristocratas. Foi
apenas na passagem para o século XIX que a quantidade de tradutores
provenientes de áreas diferentes da literária aumentou e os envolvidos com
literatura eram, em geral, escritores de romances populares, escritores
desprestigiados ou jornalistas. Nas décadas seguintes, a tradução passou a ser
feita também por funcionários públicos, professores e governantas, com vistas a
incrementar seus proventos (cf. ibid, p. 428).
Imaginando-se tal cenário, em que as traduções
precisavam agradar ao público para serem consumidas, como qualquer outra
mercadoria, e em que os tradutores não tinham grande comprometimento com a
atividade literária, é de se imaginar que as normas de tradução francesas,
conforme ditadas por Du Bellay, tenham sido adotadas também em terras
germânicas. De qualquer forma, algumas diferenças básicas entre as traduções
praticadas pelos seguidores das “belles infidèles” e as praticadas pelos
tradutores germânicos persistiam. Por exemplo, os franceses se dedicavam
sobretudo a obras clássicas – greco-latinas – e as adaptavam não apenas para
embelezá-las segundo os padrões franceses, mas também para expurgar os costumes
que fossem de encontro aos comuns à sociedade composta por seu público leitor.
Os germânicos, por sua vez, dedicavam-se a obras francesas e as eventuais
alterações que processavam no enredo não visavam a excluir marcas de costumes
diferentes dos de seus leitores; eram movidos mais por interesses relacionados
a técnicas comerciais. Voltando-nos, agora, para o cenário anterior, percebemos
que, desta miscelânea composta pelas obras colocadas à disposição dos leitores
germânicos, homogeneizada pelo processo de assimilação, emergiria, na segunda
metade do século XIX, a língua alemã padrão e a literatura alemã – englobando
também a literatura popular traduzida em curso. Ambas fortes e diversificadas,
porquanto originárias de um solo enriquecido e fertilizado pela “planta
exótica” de que nos fala Schleiermacher. Emergiria, também, o Império Alemão.
Conclusão
Quanto às diferentes perspectivas sobre tradução
apresentadas por autores e tradutores franceses e germânicos, percebemos que,
na França, um estado-nação estabelecido desde o final da Guerra dos Cem Anos
(1337-1453), a partir do século XVII não se reconhecia qualquer necessidade de
se enriquecer a cultura local com culturas a ela estrangeiras. Ao contrário –
enquanto centro cultural do Ocidente, na França, zelava-se para que nada
“desvirtuasse” sua cultura. Daí a necessidade de adaptar a literatura
estrangeira à sua própria durante o processo de tradução.
Na Alemanha, uma nação que passou por um longo
período de gestação que se estendeu por séculos, a assimilação do estrangeiro
era aconselhada e praticada com o propósito de se constituir uma cultura nacional
que se tornaria esteio do novo estado-nação em que os estados germânicos se
constituiriam a partir de 1871, quando emergem unificados da Guerra Franco-Prussiana.
Além disso, o “acolhimento do estrangeiro”, acreditava-se, levaria a língua
alemã a ocupar a posição de língua franca. De fato, o processo de formação
da língua alemã, hoje utilizada como língua nacional da Alemanha, Áustria e
Suíça – e da cultura alemã – estendeu-se por mil anos, sempre se assentando na
assimilação de outras culturas, traduzidas convenientemente para manifestar os
interesses locais momentâneos.
Porém, nem sempre os intelectuais franceses e germânicos estiveram em polos
opostos, como bem o demonstra a prática de tradução de Lutero e as concepções
de tradução que subjazem a sua prática.
Considerando que a língua influencia o modo de
pensar, conforme defendia Humboldt, percebemos que a proposta dos intelectuais germânicos
do final do século XVIII e início do XIX de assimilação do estrangeiro via
tradução vai além de dela se servirem como ato central de seu projeto de
construção (Bildung) da germanidade (Deutschheit); dela se valem, também,
como instrumento de “empoderamento” de sua língua, cultura e nação com vistas aos
propósitos imperialistas que se apresentariam no século seguinte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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(trad. Margarete von Mühlen Poll, Celso R. Braida,
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ZUBER, R. Les « Belles Infidèles » et la
formation du goût classique : Perrot
d’Ablancourt et Guez de Balzac. Paris : Armand Colin, 1995.
[1] A
tradução da Bíblia para o latim feita
no século IV por São Jerônimo, também a partir do grego – para o Velho Testamento – e hebraico – para o Novo Testamento.
[i]
O presente artigo resulta
de pesquisa patrocinada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP) por meio da concessão de uma bolsa de pós-doutorado que vigorou
entre 2011 e 2014. Seu conteúdo foi apresentado na comunicação “Por que as
belles infidèles não podiam prosperar entre Goethe e os românticos
germânicos...”, no III Encontro “E por falar em tradução...”, organizado pela
área de Estudos da Tradução da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) que teve lugar no Instituto de Estudos da
Linguagem da UNICAMP em outubro de 2014.
[ii]
Os conceitos de estado, nação e estado-nação aqui
apresentados foram simplificados e baseados nas definições apresentadas por
Bresser Pereira. Encontramos uma análise aprofundada sobre o tema em Nações e Nacionalismo – desde 1780, de
Eric J. Hobsbawm.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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