Se os leões fossem escultores... na visão deMonteiro Lobato
Dra. Vanete Santana-Dezmann
À
entrada de uma cidade, erguia-se um grupo de mármore que representava um homem
vencendo na luta ao leão – muito diferente seria essa estátua se os leões
fossem escultores.
Monteiro Lobato
A tarefa de determinar a partir de quando o
brasileiro passa a existir, bem como uma língua brasileira, um Estado
brasileiro e tudo mais a isso relacionado não foi o objetivo principal deste
trabalho, embora tais temas o constituam. Interessou-nos, antes, chamar a
atenção para as variáveis que envolvem tais determinações, a necessidade de se
esclarecer os critérios utilizados ao se estabelecer uma determinada época para
o nascimento do brasileiro e do Brasil e, sobretudo, desconstruir alguns dos
estereótipos negativos que povoam a mente de pessoas que supervalorizam as
construções discursivas transformadas em realidade pela simples repetição,
destituídas de qualquer senso crítico.
Para chegar aos objetivos propostos, iniciamos
pela revisitação da história do Brasil, analisando as contribuições de dois
aspectos culturais fundamentais para a formação de um estado-nação, segundo
definição de Timothy Brennan (BRENNAN 1992),: a língua e a literatura.
Como o livro escrito por Hans Staden, Wahraftige Historia[1] (STADEN 1557), publicado na Alemanha[2] em
1557, constituiu-se no principal disseminador de estereótipos sobre o futuro
Brasil no Velho Mundo ao longo de séculos, sua análise foi imprescindível. Somam-se
a este motivo, as reescrituras que Monteiro Lobato – um dos intelectuais
brasileiros que mais contribuiu para a formação da literatura brasileira e
fixação da língua nacional – fez do livro de Staden: Meu cativeiro entre os
selvagens do Brasil (LOBATO 1925)[3] e
Aventuras de Hans Staden (LOBATO
1927) [4].
Ao longo da pesquisa, outra reescritura do
mesmo livro se mostrou interessante e, portanto, passou a integrar as análises: Hans
Staden von Homberg bei den brasilienischen Wilden oder die Macht des Glaubens
und Betens[5],
de Robert Avé-Lallemant (AVÉ-LALLEMANT 1971), publicado em 1871, também na
Alemanha.
Como começou essa história de Brasil e de
brasileiro
Entre as várias hipóteses sobre a origem do
nome Brasil, a que mais retrocedeu no tempo a situa no início do século XIV, a
partir de quando já se podia ver na cartografia européia variações como Ilha do
Brasil, Ilha de São Brandão, Brasil de São Brandão e Hy Brasil. Esta
seria uma ilha flutuante que desaparecia misteriosamente do horizonte dos
navegadores (BARROSO 1941, SOUSA 1999 e FERRAZ 1939). Quando os portugueses a
alcançaram, em 1500, ela já se encontrava ocupada por inúmeras nações
indígenas, entre as quais a tupi-guarani, que, quinze séculos antes,
estabelecera-se no futuro Brasil, coincidentemente em busca da “Terra sem Males” a que sua religião
aludia (CLASTRES 1975).
Embora em todos os documentos de Portugal e
Espanha referentes a suas colônias na América[6] já
encontremos o termo Brasil, no século XVI, não havia qualquer referente para um país ou uma pátria chamada
Brasil, pois não havia referente para uma nação brasileira ou povo
brasileiro. Tampouco existia uma língua
brasileira.
A noção de país implica, entre vários elementos, a existência de um território delimitado geograficamente
e as fronteiras do Brasil ainda não
haviam sido determinadas, a não ser por uma linha reta, estabelecida
pelo Tratado de Tordesilhas[7], que, na prática, não funcionaria como limite,
conforme se constatou posteriormente. Além disso, a noção de país se alia à de Estado, pressupondo a presença de
governo, cidadãos e legislação próprios, além de forças armadas que os
defendam. A noção de nação, por
sua vez, pressupõe a existência de um grupo de indivíduos que compartilham os
mesmos elementos culturais, sendo a língua um dos mais importantes. Daí a
relação de interdependência entre nação, pátria e língua, Estado e país, pois é
o estabelecimento de afetividade para com o local de nascimento e a semelhança
cultural que unem os que nascem e vivem num mesmo local em torno de uma pátria.
Ao mesmo tempo, não é possível definir uma determinada língua sem que se
utilizem fatores de ordem geopolítica, tais como o espaço territorial de um
Estado[8].
O contato com os indígenas, diretamente ou
mediado por relatos, levou o homem ocidental à concepção de um estereótipo
sobre os índios: ingênuos. Mas tal estereótipo, à primeira vista positivo, ao
ponto de influenciar Thomas Morus
A língua portuguesa, uma vez transportada para a colônia, já não seria mais
aquela até então praticada na metrópole, posto que a relação espaço-tempo em
que passa a ser praticada é
diferente em virtude do contato com as línguas locais e com outros elementos, tais
como animais e plantas, até então desconhecidos pelos portugueses. Porém, no
início do século XIX, será possível divisar na colônia uma parcela da população
que, embora descendente dos exploradores portugueses, podia se dizer
brasileira, não exatamente no sentido de uma nação consciente de sua correlação
com os demais integrantes da população de moradores das regiões coloniais, mas
no sentido de que se sentia distinta do povo português. Ou seja, não havia
ainda uma unidade nacional em torno de uma brasilidade. O que havia era
oposição em relação aos portugueses e a Portugal.
Para nutrir a referida desunião em
torno de uma identidade comum, entre essas pessoas havia barreiras geográficas,
econômicas, sociais, raciais e culturais que as diferenciavam entre si,
impedindo o desenvolvimento da
Com relação aos aspectos geográficos, há que se
considerar que a área da América se estendia do Equador até abaixo do Trópico
de Capricórnio, abrangendo regiões com clima, tipo de solo e vegetação bastante
variados, o que, por menos determinista que se queira ser, é preciso
reconhecer, caracterizaria modos de vida e, portanto, culturas diferentes.
Ademais, o país Brasil foi se
formando aos poucos. Só para citar alguns exemplos, a conquista das terras que
constituiriam o Ceará e o Maranhão ocorreu no início do século XVI; a das
terras que constituiriam a Paraíba e o Rio Grande do Norte, no fim desse século
e a ocupação de Minas Gerais, no início do século XVIII. Mesmo no caso de São
Paulo, umas das mais antigas cidades da América, fundada em 1554, constata-se
falta de expressão até a descoberta do ouro
Quanto ao aspecto econômico, a colônia teria passado por três fases. Na primeira, que se estende de
Quanto às distinções raciais, além das diferenças entre os próprios
portugueses que iniciaram a exploração, oriundos de diversas regiões de
Portugal – o que implica relativas diferenças lingüísticas, culturais e raciais
–, houve uma série de invasões de holandeses e franceses, que deixaram alguns
descendentes em partes específicas da colônia; a captação de negros de
diferentes nações africanas – caracterizados por todas as demais diferenças que
isso pressupõe – e o contato com os nativos de diversas nações indígenas – que
também apresentavam diferenças entre si. Devido à miscigenação em variados
graus entre europeus brancos e mestiços (com mouros, por exemplo), nativos
indígenas e africanos negros, não se pode esperar homogeneidade racial capaz de
fazer com que os naturais da América se identificassem entre si como
pertencentes a uma mesma raça.
No âmbito sócio-econômico, a diferença básica flagrada no início do
século XIX era a separação entre uma minoria abastada e educada segundo os
padrões ocidentais e uma maioria pobre e ignorante dos conhecimentos
considerados necessários a uma boa formação cultural pelos padrões europeus.
Dos descendentes dos primeiros
portugueses, até o século XVIII, pode-se afirmar que tinham Portugal como
verdadeiro domicílio. Apenas os colonos do interior, com o tempo, passaram a
valorizar a terra que habitavam (cf. HOLANDA 1963, p. 64-65). O resultado das
diferenças entre os que mantinham os olhos em Portugal e os que tinham os pés
fixos na colônia se manifestava nas lutas internas. Houve, também, tentativas
localizadas e restritas a certos grupos de tornarem sua região independente de
Portugal, sobretudo a partir da descoberta de ouro e pedras preciosas nas Minas
Gerais, pois aqueles que pretendiam criar raízes na América questionavam a
evasão das riquezas a ela pertencentes. Portanto, foi antes o interesse econômico que o sentimento patriótico
que incrementou as revoltas contra o domínio português e nunca houve em toda a
história da América (portuguesa) uma revolta que tencionasse a independência do
território como um todo.
Caberá, pois, a oriundos das elites
locais – parcial ou totalmente europeizadas – os primeiros esforços no sentido
de construção de uma brasilidade, ainda que artificial, que dará a base para a
independência política e econômica em relação a Portugal.
O primeiro
apoio legal à construção da brasilidade se dá justamente com a fixação
da língua portuguesa como língua oficial da colônia – o Édito dos Índios,
assinado pelo Marquês de Pombal em 1775, proibindo o uso da Língua Geral[10], vai
ao encontro de suas aspirações. Além disso, o incremento da população
portuguesa recém chegada e do tráfico de negros contribuiu indiretamente para a
decadência da língua geral, pois o português passaria a ser a língua franca
também para os africanos residentes na América (FLORENTINO 1977, REIS e GOMES
1977, ALENCASTRO 2001, FREYRE 1963, GORENDER 1999 e VERGER 1980).
Enquanto Estado, o Brasil estava em gestação, pois ainda era dependente das
decisões da Coroa Portuguesa. Enquanto nação,
pode-se dizer que também permanecia
Nesse contexto, gramatizar o português falado in loco representava mais que uma
atitude restrita ao campo do saber; tratava-se de uma atitude política. Assim,
podemos fixar em 1835, quando da publicação do Compêndio da gramática da
língua nacional, de Antônio Álvares Pereira Coruja, o reconhecimento de
características próprias – e esforço no sentido de demarcá-las – a uma língua
brasileira e, por extensão, de um povo que a fala. Mas a gramatização do
Português (brasileiro), por outro lado, criou o efeito imaginário de que no
Brasil não se fala corretamente (ao se tomar Portugal como parâmetro). Daí, talvez,
uma das raízes de um complexo de inferioridade que levaria os brasileiros a
continuar vendo o mundo a partir do ponto de vista eurocêntrico – o qual os
diminui, obviamente –, não reconhecendo suas características culturais como
diferentes, não necessariamente inferiores, em relação às do centro. O sujeito
brasileiro, macerado pelo parâmetro europeu, aprende, dentro de um sistema
também europeu – que prega que o que tem valor, o que é bom e correto, é o que
vem do centro –, é, pois, levado a se depreciar e a depreciar os elementos
nativos e os demais oriundos de culturas não ocidentais. A insistência no
silenciamento de parte de seus constituintes – o indígena e o negro – e a
diferenciação com relação ao europeu fazem com que o sujeito nacional já nasça
marcado pelo complexo de inferioridade.
As grandes transformações geradas pela fixação
da corte no Rio de Janeiro (1808), elevação do Brasil à categoria de Reino
Unido ao de Portugal (1815) e a independência política (1822) exigiam também a
criação desse país chamado Brasil, e, consoante à gramatização da língua
brasileira, como comprovação de sua realidade material, no âmbito literário, os
esforços se concentrariam na produção de antologias, também com o objetivo de
demonstrar a existência material dessa literatura, pois só um povo com língua e
literatura própria, governo e forças armadas, história e fronteiras geográficas
definidas pode reivindicar o status
de país e Estado independente – e a intelligentsia
local se esforçou no sentido de construir esses elementos. A esta intelligentsia, que se empenhou em
construir um Brasil, pode-se chamar brasileira, a despeito de sua origem,
formação e razões que a movia, mas considerando tão somente os resultados que
objetivava.
Dessa forma, começa a invenção da literatura
brasileira, tendo como objetivo final a invenção do próprio Brasil. Para tanto,
várias distorções foram levadas a efeito. Por exemplo, é
neste contexto que a Inconfidência Mineira passa a ser apresentada como
movimento de independência nacional, mais precisamente por meio do trabalho de
recuperação histórica empreendido por João Manuel Pereira da Silva em sua
antologia Parnaso Brasileiro
(1843-1845). Também é neste contexto que se cria a concepção de que o índio
seria o brasileiro autêntico, sendo para nós o que os godos foram para os
alemães. Assim, a função do índio romântico extrapolou o campo literário ao
possibilitar a idealização de um passado nobre e original para o brasileiro e
contribuir para o sentimento de união nacional, enquanto elemento comum a todas
as regiões.
Além
disso, as teorias defensoras da superioridade da raça ariana, tão populares
durante o século XIX, contribuíram para que o indígena fosse escolhido como o
elemento mais característico da raça mista brasileira, porquanto, se não era
branco, também não era negro. Esse antepassado mítico, lisonjeado pelas
qualidades comumente atribuídas ao cavaleiro medieval, ao qual fora
identificado, foi responsabilizado pelo tom mais escuro da pele da maioria dos
brasileiros.
Da
mesma forma que os índios foram supervalorizados, seu habitat natural também o
foi. É assim que as florestas, os rios e a natureza em geral, bem como a
variedade de formas de vida animal e vegetal, ocupam lugar especial na nascente
literatura brasileira, que não podia evocar uma tradição cultural milenar, como
o fazia a literatura européia.
O
Brasil de belas Iracemas – metáfora de suas terras, florestas, minérios –
prontas para ser defloradas por europeus inebriados de desejo, deslumbrados por
sua exuberância e volúpia, esse Brasil de nobres Jucas-Piramas, dispostos a
morrer em nome de sua honra, seria, pois, apenas mais uma construção imaginária
que nada tinha de originalidade. Tanto a “certidão de nascimento do Brasil”, a Carta
de Pero Vaz de Caminha, quanto a obra mais famosa que levou à Europa o
conhecimento dessa parte do mundo e serviu como matriz para a criação do
imaginário europeu sobre o Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha, e Warhaftig Historia, o best-seller
de Staden, versam apenas sobre índios e a exuberância da natureza.
O sucesso da obra de Staden se deveu a vários
motivos, entre os quais destacamos sua mensagem religiosa, o interesse de
outros reinos pela América (razão pela qual o rei de Portugal proibiu em sua
jurisdição publicações sobre a colônia) e seu título completo, bastante
sensacionalista[11].
O Brasil na pena
dos alemães
Staden era um jovem de vinte e poucos anos
quando resolveu conhecer as Índias Orientais; seria sua primeira viagem ao
exterior. Isto foi em 1547. Como, ao chegar em Portugal, todas os navios com
aquele destino já haviam partido, engajou-se como artilheiro em um navio que ia
para a colônia portuguesa das Índias Ocidentais. A aventura, porém, não durou
muito – só o tempo de ir até Olinda, onde entregou alguns prisioneiros e
mercadorias para abastecer os colonos e combateu alguns dias contra os índios
caetés, e retornar para Lisboa, onde chegou em outubro de 1549.
Sua segunda viagem
começou na Espanha, em abril de 1550, com destino à colônia espanhola, a
serviço de sua metrópole. Após diversas aventuras, que incluem o naufrágio de
um dos navios da expedição, Staden e alguns outros tripulantes acabaram
aportando
Segundo afirma
Na Alemanha, não se
limitaram a reeditá-lo, criando-se várias adaptações, dentre as quais nos
chamou a atenção Hans Staden von Homberg
bei den brasilienischen Wilden oder die Macht des Glaubens und Betens,
publicada em 1871 por Robert Avé-Lallemant, outro alemão que estivera no Brasil
pela primeira vez também aos vinte poucos anos, em 1836, e em 1957 retornou, percorrendo o território de norte a sul e escrevendo sobre as regiões por onde
passou. Dentre suas obras, a mais desconhecida e difícil de se encontrar
é a referida adaptação.
A época
No mesmo período, a Alemanha, após a
desintegração do Sacro Império Romano de Nação Germânica (1806) e as guerras
civis entre territórios germânicos inspiradas pela idéias liberais vindas da
França, encontrava-se mergulhada em uma ditadura que só teria fim em 1850, com o
processo de industrialização.
Restituída a liberdade de expressão e
fortalecida a burguesia – também conseqüência da industrialização –, quando a
situação parecia se acomodar com a Prússia no comando dos territórios
germânicos e quando Avé-Lallemant já havia retornado de sua segunda viagem ao
Brasil, todos são arrastados a uma nova guerra contra a França, ao fim da qual
a Alemanha tem apenas uma vitória, mas bastante significativa: a unificação da
maioria dos territórios em torno do II Reich.
Como a Guerra Franco-Prussiana se estendeu
entre
O próprio título escolhido para o
capítulo no qual essa seqüência de ações se passa alude à sensação de tristeza
e desespero que ele procura imprimir
Apresentar um Staden desesperado e
desgraçado era importante porque, quanto pior fosse sua situação, maior o
crédito de seu Deus pelo socorro que lhe prestasse, demonstrando, assim, seu
poder. É por isto que Avé-Lallemant ressalta os perigos aos quais Staden esteve
exposto, mesmo que, para isso, precisasse criar ou reafirmar narrações
inverossímeis como a que se dá quando, logo após ter sido capturado, Staden é
objeto de uma disputa entre os índios de diferentes tribos. Diante do impasse,
um dos índios teria proposto que o dividissem ali mesmo, para que cada qual
tivesse sua parte – mesmo à época de Avé-Lallemant, graças inclusive às
informações de Staden, já se sabia que o ritual canibalesco durava vários meses
e que deveria chegar ao fim em uma época específica, sendo, pois, absurda a
idéia de que se pudesse retalhar Staden logo após sua captura, antes mesmo que
tivesse sido apresentado à tribo. Porém, após a narração desse fato,
Avé-Lallemant pôde apresentar Staden como um homem realmente desgraçado, ao
qual apenas a intervenção divina poderia salvar (cf. AVÉ-LALLEMANT 1871, p.
51).
A transformação de
Staden em testemunha de sangue do cristianismo e na própria imagem de Cristo na
Terra se deve ao contexto em que a adaptação de Avé-Lallemant foi publicada e
ao objetivo a que parece se destinar.
À Europa Renascentista – e à Reformista também
– era útil a construção de um imaginário sobre o Brasil, ou, antes, de um
Brasil imaginário, demonizado, que resultasse na construção de uma nova
identidade para si própria. Criando o conceito de selvagem antropófago – o
caraíba, o canibal –, transportado para as terras onde o Brasil viria a se
constituir, o europeu pôde, por oposição, construir para si a imagem de bom e
civilizado, a despeito das barbáries praticas pelo Império Romano e pela
Inquisição – apenas para citar o passado então recente da Europa.
Na segunda metade do século XIX, época
Que passado glorioso
poderia despertar um saudosismo histórico capaz de levar diferentes nações a se
conglomerar em torno de uma única pátria senão uma representação performática,
uma construção artificial? Só por meio de um imaginário coletivo seria possível
criar um sentimento de comunidade entre povos tão diversos (prussianos, saxões,
bávaros etc.) que serviriam de base para a construção de uma nação alemã.
Aliás, não é sem razão que a unificação alemã se inicia pela unificação –
sempre relativa – lingüística, na época de Martin Luther. Foi o espírito da
linguagem que primeiro tornou possível a congruência de povos tão diferentes
entre si como os que hoje constituem o povo alemão em torno de objetivos
comuns, que levaram à formação do II
Reich. Esse espírito da linguagem nasceu com a Bíblia de Lutero, que trouxe
simultaneamente uma contribuição incomensurável para as transformações que
levariam à formação da Alemanha bem como para a transformação que abalaria o
mundo ocidental – a Reforma Protestante. Reeditando o livro de Staden,
reescrito segundo os interesses de sua época, Avé-Lallemant contribui
decisivamente para a formação dessa comunidade germânica imaginária oferecendo-lhe
um mártir – luterano, obviamente: Hans Staden.
De qualquer forma, o livro de Staden mereceu destaque por séculos,
chegando a ser considerado principal fonte etnográfica sobre a América. Dado o
valor científico que atribui à obra de Staden, Helmut Andrä (ANDRÄ 1960) , por
exemplo, tenta nos convencer de que a imagem do rude aventureiro (palavras
suas) desaparece diante do resultado de seu trabalho, dando lugar a um homem de
espírito elevado e dedicado a registrar exclusivamente a verdade. Seus registros,
porém, serviram para reforçar o imaginário bastante irreal sobre o Brasil
criado por Staden e pelo imaginário coletivo de sua época – de onde advêm
preconceitos e estereótipos até hoje atribuídos a um país e a um povo que se
quer existiam, como fazemos questão de frisar, na época em que tais relatos
foram escritos.
Assim, enquanto os
índios da América e, posteriormente, os brasileiros têm sido estigmatizados
como não-civilizados, Staden tem sido lembrado como herói que sobreviveu ao
cativeiro entre os selvagens nus e canibais e como autoridade sobre o Brasil. A
escolha de Wolfhagen como domicílio após sua “heróica” fuga dos canibais a
elevou ao nível de cidade histórica, cujas principais atrações são a casa onde
Staden morou, o museu que lhe dedicaram e o restaurante mais antigo da cidade,
que, após a morte de seu cidadão mais ilustre, mudou seu nome para Gasthaus
Schiffchen e adotou como símbolo uma caravela. Homberg, a cidade onde
Staden nasceu, também reclama seu quinhão de fama, oferecendo aos turistas a
possibilidade de visitar a casa onde seus pais viveram.
Staden nas mãos de Lobato
A primeira publicação de seu livro em português
data de 1892, na Revista Trimestral do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, editada no Rio de Janeiro por
Tristão de Alencar Araripe (cf. FRANCO 1974, p. 19 e FERRI 1974, p. IX),
baseou-se na versão francesa de Ternaux-Compans, publicada em Paris em 1837, e
mereceu crítica negativa de Francisco de Assis Carvalho Franco devido à
ortografia de Araripe, que classificou como originalíssima; à inacessibilidade
da Revista Trimestral do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro ao público leigo; aos erros de impressão
e à ausência de notas explicativas (cf. FRANCO 1974, p. 23).
Assim, o livro de Staden só se tornaria conhecido
no Brasil a partir da tradução de Alberto Löfgren, intitulada Hans Staden. Suas viagens e cativeiro entre
os selvagens do Brasil, publicada
Além de terem sido traduzidas para o francês,
as aventuras de Staden podiam ser lidas em latim e holandês já no século XVI e,
posteriormente, em inglês, porém ainda antes de chegarem ao português. Ao se
constatar o intervalo de quase três séculos entre a publicação alemã e a
primeira tradução para o português daquela que ficou conhecida como a primeira
obra sobre o Brasil, pode-se questionar a razão, ou razões, de tanta demora.
Não é por acaso que a tradução só foi
empreendida após o momento em que o Brasil inicia o processo para se constituir
como país e nação independentes de Portugal, ou seja, quando se pode vislumbrar
uma pátria brasileira. Tal momento foi marcado pelas manifestações
nacionalistas produzidas pelos românticos, abolicionistas, defensores da
independência e republicanos. Como a estes e àqueles que herdaram sua ideologia
provavelmente não interessava resgatar a imagem negativa que Staden apresenta
de seu Brasil – uma terra de selvagens nus e canibais –, temos como
conseqüência uma tradução marcada pelo emprego de expressões e construções
rebuscadas e pela ausência de qualquer nota esclarecedora sobre os termos em
tupi e outros que não se encaixavam à realidade local presentes no texto em
alemão.
Finalmente, já dentro de um contexto e projeto
nacionalistas, temos a ordenação literária de Lobato, publicada em 1925 – Meu
cativeiro entre os selvagens do Brasil –, porém apenas da Primeira Parte,
levando-nos novamente ao questionamento: por que ele não se dedicou à Segunda
Parte? A diferença entre os temas abordados em ambas poderia ser esclarecedora:
na primeira, “Die Reisen”[17],
Staden trata das duas viagens que empreendeu à América, porém é na segunda,
“Land und Leute”[18], que tece seus
comentários sobre a terra e os nativos que os primeiros colonizadores nela
encontraram. Uma resposta possível seria, então, o desinteresse em continuar
reproduzindo a ideologia de Staden e passar a apresentar a sua própria, que se
manifestaria explicitamente na sua reescritura das aventuras de Staden para a
literatura infantil, cujo título completo é Aventuras
de Hans Staden: o homem que naufragou nas costas do Brasil em 1549 e esteve
oito meses prisioneiro dos índios tupinambás narradas por dona Benta aos seus
netos Narizinho e Pedrinho e redigidas por Monteiro Lobato, publicada em
1927. De qualquer forma, Lobato não deixa de exprimir sua tendência ideológica,
como é natural, mesmo em sua ordenação literária, conforme se pode observar em
alguns exemplos do cotejo do Primeiro Capítulo de sua ordenação literária[19], da tradução de Löfgren[20] e da edição princeps[21].
Com relação à estrutura sintática, dadas as diferenças marcantes entre os
idiomas português e alemão nesse aspecto, não haveria como construir o texto em
português se mantendo a estrutura do alemão[22]. Nesse caso, as diferenças constatadas tanto
na tradução de Löfgren quanto na ordenação de Lobato são inevitáveis. Por
exemplo, uma tradução que mantivesse a mesma estrutura da frase “Ich blieb
einige Zeit bei ihm, und als ich ihm erzählte, dass ich meine Heimat verlassen
hätte, um nach Indien zu segeln, sagte er mir, ich sei zu spät gekommen, denn
die Schiffe des Königs, die nach Indien fahren, seien schon fort.” seria quase
ininteligível em português: “Eu permaneci algum tempo com ele, e quando eu lhe
contei, que eu minha terra deixado havia, para até Índia zu[23] navegar, disse ele me, eu estava/era muito
tarde chegado, pois os navios do rei, eles para Índia foram, eram já
ausentes.”.
Partindo da hipótese de que Lobato se baseou na
tradução de Löfgren para fazer sua ordenação literária[24], algumas de suas escolhas se justificariam
pela influência do tradutor, cuja versão apresentada para o mesmo excerto é:
“Em Lissebona alojei-me em uma hospedaria, cujo dono era alemão e se chama
Leuhr, o moço, onde fiquei algum tempo.
/ Contei-lhe que tinha saído da minha pátria e perguntei quando esperava que
houvesse expedição para a Índia. Disse-me que eu tinha demorado demais e que os
navios d’El-rei, que navegavam para a Índia, já tinham saído. Pedi-lhe
...” (LÖFGREN 1930).
Comparando o texto de Löfgren e o de Lobato, em
apenas dois momentos encontramos escolhas que poderiam implicar diferenças de
sentido que consideraríamos relevantes neste contexto.
Para citar apenas uma, vejamos a substituição
de “Contei-lhe que tinha saído de minha pátria”, do texto de Löfgren, por
“Contei a Lhur a minha vida e a aventura que me levava”, no texto de Lobato.
Analisando-o no conjunto, percebemos que o enunciado “Contei-lhe que tinha
saído de minha pátria”, na disposição proposta por Löfgren, parece
descontextualizado e não relacionado com “perguntei quando esperava que
houvesse expedição para a Índia”. Não haveria entre os dois enunciados qualquer
relação que se poderia supor – nem de causa e efeito, nem de explicação.
Colocadas lado a lado, ligadas pelo conectivo aditivo “e”, essas sentenças
parecem sugerir que Staden saiu de casa e, já que estava em Lisboa, de onde
partiam navios para as Índias, poderia embarcar em algum,
descompromissadamente. Logo, o Staden de Löfgren seria uma espécie de
“mochileiro” do século XVI ou um andarilho; alguém que anda sem destino, indo
“para onde o vento soprasse”, desapegado, desgarrado, sem objetivos.
No texto de Lobato, tal como no de Löfgren, parece
não haver qualquer relação entre a estadia de Staden na hospedaria de Luhr e
seu relato. Mas, diferentemente do texto de Löfgren,
Quanto ao Staden da edição princeps, que provavelmente não influenciou a leitura de
Lobato, desconhecedor do idioma alemão, parece-nos um jovem romântico e ingênuo
que deixou sua pátria – seu “ninho de aconchego”, ao qual se liga
emocionalmente – em busca de uma aventura – ir para as Índias –, mas, talvez
justamente por ser jovem e ingênuo, não se preparou para essa aventura, não
procurou informações nem pensou sobre as adversidades que poderia enfrentar.
Talvez tenha imaginado mesmo que, a qualquer momento que chegasse ao porto de
onde partiam os navios paras as Índias, haveria um prestes a partir ou, em caso
contrário, logo chegaria algum.
Quanto aos acréscimos, notamos
que são mais abundantes no texto de Lobato que no de Löfgren e que se prestam
não só a explicar o que Lobato julga digno de explicação e a conferir certo
caráter literário ao texto, mas também a demarcar posições. Como exemplo, temos
a caracterização e localização de Homberg : “pequena cidade do Estado de
Hessen, na Alemanha”, em lugar de “Homberg, em Hessen”, na versão de Löfgren.
Ao fazer referência à Alemanha como um país com subdivisões internas, em
“estados”, Lobato trás aquele aglomerado de ducados e principados independentes
entre si para a dimensão de um país complexo segundo parâmetros modernos,
demonstrando respeito pelo outro – talvez o mesmo respeito com que, como
cidadão brasileiro que deseja alçar seu país a um patamar mais elevado no
cenário internacional, deseja que o Brasil seja tratado.
Com relação às supressões, uma marca indelével das mãos de Lobato sobre o texto
de Staden (edição princeps) é a supressão da referência a Deus, logo no
início do primeiro capítulo do livro. Enquanto na edição princeps temos
“Ich, Hans Staden aus Homberg in Hessen, nahm mir vor, wenn es Gott gefiele,
Indien kennen zu lernen...”, traduzida por Löfgren como “Eu, Hans Staden, de
Homberg, em Hessen, resolvi, caso Deus quisesse, visitar a Índia.”, na
ordenação de Lobato não há qualquer referência a Deus: “Eu, Hans Staden,
natural de Homberg, pequena cidade do Estado de Hessen, na Alemanha, em certo
momento da minha vida deliberei conhecer as Índias tão famosas.”
Escrito e publicado no contexto da Reforma, o
livro de Staden aparece, em certa medida, como uma obra de exaltação ao Deus
ocidental cultuado pelos luteranos. É a este Deus, inclusive, que ele credita
sua sobrevivência ao cativeiro e libertação, apresentando-as como milagres.
Na versão infantil, Lobato estabelece
contraponto entre o Deus europeu e os Deuses dos tupinambás, chegando a
ridicularizar Staden ao retratá-lo como fanático, um cristão fundamentalista.
Em sua ordenação literária, porém, ele simplesmente suprime a expressão “se
Deus quiser”, silenciando, assim, o caráter religioso de Staden, o que o desvincula
de seu contexto histórico.
Quanto às diferenças na escolha lexical, as diferenças mais marcantes entre a postura
ideológica de Lobato, Löfgren e de Staden (edição princeps),
evidenciam-se no seguinte parágrafo:
Der kapitän dieses Schiffes,
der Penteado hiess, wollte als Kauffahrer nach Brasilien segeln, besass aber
ausserdem die Erlaubnis, Schiffe anzugreifen, die in der Berberei mit den
Mauren handelten. Auch französische Schiffe, die in Brasilien mit
den Wilden Handel trieben, durfte er erbeuten. Schliesslich sollte er für den König
einige Gefangene nach Brasilien mitnehmen, die nach ihrer Verurteilung
begnadigt worden waren, weil man sie in dem neuen Land ansiedeln wollte. (edição princeps)
O capitão
desta nau chamava-se Pintiado e se destinava ao Brasil, para traficar e tinha
ordens de atacar os navios que comerciavam com os mouros brancos da Barbaria.
Também se achasse navios franceses em tráfico com os selvagens do Brasil, devia
aprisioná-los, bem como transportar alguns criminosos sujeitos a degredo, para
povoarem as novas terras.. (tradução de Löfgren)
O capitão
desse barco chamava-se Penteado e ia para o Brasil em viagem de comércio,
embora com ordem de atacar os navios que traficavam com os mouros da Berbéria.
Também tinha ordem de apresar os navios franceses que encontrasse nas costas do
Brasil em contato com os índios, deixando em terra, como castigo, os
tripulantes portugueses que por acaso descobrisse a bordo. (ordenação de
Lobato)
Deste parágrafo, destacamos as versões de Kolbe, Löfgren e Lobato – Wilden / selvagens do Brasil /
índios.
Neste caso, o termo Wilden (selvagens, bravos, ferozes) utilizado na edição princeps
está em consonância com selvagens,
utilizado por Löfgren. A única diferença entre ambos é que este especifica de
onde são os tais selvagens (do Brasil), enquanto o primeiro apenas se referem a
selvagens, sem especificar de onde são, talvez por enxergar uma relação direta
entre selvagens e Brasil, como se já fosse dado que apenas nesta parte do mundo
houvesse selvagens, ou, talvez, por considerar o contexto suficiente para
esclarecer de quais selvagens se trata. Lobato, da mesma forma, não especifica
de onde são os tais índios –
provavelmente pela segunda razão, uma vez que a própria recusa em usar o termo “selvagens”
já aponta para uma atitude nacionalista.
Ao contrário do trabalho efetuado por Lobato em
sua ordenação literária, em que sua posição parecia ainda indefinida, sua
reescritura da história de Staden para o público infantil – que ele mesmo
classificou como adaptação, o que lhe confere mais liberdade de ação –, Aventuras
de Hans Staden revela alterações indeléveis e constantes, uma vez que
Lobato a encaixa em outro contexto, de que se serve para explicitar uma
ideologia agora bem definida. Assim, três séculos após o início da colonização,
entre as várias histórias que conta a seus netos, D. Benta inclui as aventuras
de um jovem alemão que, em meados do século XVI, naufragou no litoral do Novo Mundo e se tornou prisioneiro dos tupinambás durante
aproximadamente nove meses. Porém, não só a voz de D. Benta, mas também
a de outras personagens se prestam à expressão das concepções de Lobato sobre o
processo de colonização e o eurocentrismo. Neste ponto, vamos nos limitar a
apenas alguns exemplos, dentre os vários que encontramos.
Por exemplo, sobre o episódio que narra como a
colônia Iguaraçu foi retomada dos nativos, em que se sobressai a valentia dos
portugueses – 90 portugueses auxiliados por aproximadamente 30 escravos, contra
oito mil índios –, D. Benta ressalta o termo avaliados e acrescenta, com a leve
ironia que perpassa toda a narração: “As avaliações dos interessados em geral
erram para mais. O Compadre Teodorico nosso vizinho, sempre avaliou o seu sítio
em setenta alqueires. Veio o agrimensor, mediu e achou trinta...” (LOBATO 1998,
p. 10).
Em outro momento, terminada a primeira viagem
de Staden, continua, porém, a conversa entre as personagens de Lobato, que
discutem sobre a exploração econômica do Brasil por Portugal. A conclusão
apresentada por D. Benta segue sua tendência de ressaltar aspectos negativos do
europeu, sobretudo, do português: “Não basta ganhar, é preciso conservar, coisa
muito mais difícil. Todo o ouro que Portugal tirou do Brasil foi se passando
aos poucos para os países industriosos, sobretudo para a Inglaterra, em troca
dos produtos das suas fábricas. Quando
os portugueses abriram os olhos, era tarde – o ouro do Brasil estava todo em
mão de gente mais esperta” (LOBATO
1998, p. 13, grifo nosso).
Quanto à identidade heróica construída pelos
europeus para si próprios, como se pode notar
Finalmente, quanto às torturas sofridas por
Staden, D. Benta ressalta: “não há termo de comparação entre o modo pelo qual
os índios tratavam os prisioneiros e o que era de uso na Europa. Lá a
‘civilização’ recorria a todos os suplícios, inventava as mais horrendas
torturas. Assavam os pés da vítima, arrancavam-lhes as unhas, esmagavam-lhe os
ossos, davam-lhe a beber chumbo derretido, queimavam-na viva
Como se pode inferir, Aventuras de Hans
Staden se encaixaria em um projeto de construção de brasilidade que se
serve alguns artifícios, entre os quais educar as crianças de tal forma que
elas pudessem conhecer e se orgulhar de seu país, sem, no entanto, tornarem-se
ufanistas.
De sua preocupação com a formação dos futuros
cidadãos brasileiros, vem seu interesse em recontar as histórias de além-mar,
desmascarando a ideologia do dominador nelas contida e sobrepondo a ela uma
ideologia de caráter nacionalista. Portanto, o tipo de canibalismo que Lobato
pratica ao se utilizar da obra de Staden para, a partir de seu interior, tecer
críticas à ideologia eurocêntrica e expor a sua própria torna Aventuras de
Hans Staden uma obra exemplar do gênero que só viria a ser produzido no fim
do século XX pelos escritores pós-coloniais. Isto porque nela Lobato se
apropria da produção do colonizador para dar voz ao colonizado, apresentando-o
não mais como um selvagem nu, e desconstrói o estereótipo eurocêntrico do
bom-europeu.
Também lhe interessava, dentro de seu projeto
de construção de brasilidade, selecionar obras mais abrangentes em termos
culturais, diponibilizando às crianças brasileiras – e adultos também – grande
parte do cânon da literatura universal. Neste ponto, sua tática se aproxima da de Goethe, que reconhecia na presença do
elemento estrangeiro os fundamentos da nascente cultura oficial alemã:
Independentemente
de nossa produção, nós já atingimos um elevado patamar cultural (Bildung) graças à completa apropriação
do que nos é estrangeiro. Logo outras nações terão que aprender alemão, pois
perceberão que desse modo podem conservar em grande quantidade o aprendizado de
quase todas as outras línguas. De fato, de quais línguas não temos nós os
melhores trabalhos nas mais eminentes traduções? Já faz muito tempo que os
alemães contribuem para a mútua mediação e reconhecimento.
Quem
entende alemão se encontra no mercado onde as nações apresentam seus produtos.
A força de uma língua está não em rejeitar o estrangeiro, mas em o devorar.
(apud BERMAN 1992, p. 11-12)
Conclusão
Assim, ao reescrever a obra de Staden para
crianças, Lobato procura criar para o Brasil aquilo que ainda lhe faltava, a
despeito dos esforços anteriores, ou seja, uma imagem positiva de si por meio
da valorização dos eleitos antepassados dos brasileiros (os índios). O que
faltou no trabalho dos românticos brasileiros foi justamente o que Lobato fez:
a valorização pautada por reflexões racionais
– não-romantizadas. Neste sentido, Lobato faz pelo Brasil o que Martin Luther, Goethe e os românticos
fizeram pela Alemanha, ou seja, procura criar uma língua nacional e elevar o
considerado brasileiro nato, legítimo, a um patamar superior ao que ocupava na
cultura universal, mas o faz de um modo diferente do tentado pelos românticos
na medida em que apenas equipara os ditos selvagens ao europeu, sem tentar
provar sua superioridade.
A estratégia utilizada por Lobato foi
demonstrar os aspectos negativos dos europeus e a relatividade das perspectivas
– só assim, raciocinando sobre o relativismo, índios e europeus podem ser
equiparados: ambos têm defeitos e qualidades e ambos agem corretamente de
acordo com a perspectiva que adotam. A partir do deslocamento da visão para a
perspectiva da cultura periférica, Lobato alcança, pois, uma visão
não-romantizada do índio. Em seu livro Aventuras
de Hans Staden, o índio deixa de ser o bom-selvagem e o mau-selvagem –
ambas perspectivas carregadas de preconceitos eurocêntricos –, e o branco deixa
de ser o bom-europeu ao serem representados como personagens complexas,
esféricas, constituídas por características contraditórias – em oposição às personagens planas, totalmente boas ou
totalmente ruins. Logo, enquanto os românticos tentaram enaltecer o
bom-selvagem e algumas vertentes do Movimento Modernista procuraram trazer o
canibal para a cena cultural, Lobato repele o mito do bom-selvagem e tenta
explicar a atitude dos canibais tomando por base a ética dentro da qual se
encaixava – e a partir da qual fazia sentido –, contrapondo-a à ética dos autodenominados
civilizados, e, ainda, demonstrando que a ética do homem branco não é superior
á dos canibais, podendo, mesmo ser condenada pelos que se encontrassem fora de
sua lógica. Neste sentido, em Aventuras
de Hans Staden, Lobato toca diretamente em alguns dos pontos nevrálgicos do
supostamente civilizado europeu: a carnificina que sua ganância gerou nas
Américas, com a destruição de culturas em vários aspectos mais desenvolvidas
que a ocidental, em referência à selvageria com que portugueses e
principalmente espanhóis trataram os habitantes autóctones de suas colônias
americanas (cf. LOBATO 1998, p. 27); os horrores da escravidão (cf. LOBATO 1998,
p. 10) e, talvez o mais flagrante de todos os seus crimes, uma vez que foi
praticado contra seus iguais, a Inquisição e seus requintados métodos de
tortura (cf. LOBATO 1998, p. 30).
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__________. Meu
cativeiro entre os selvagens do Brasil (ordenação literária: Monteiro
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__________. Duas
viagens ao Brasil (trad.: Alberto Löfgren). Rio de Janeiro: Publicações da
Academia Brasileira, 1930, 2a. edição.
__________. Duas
viagens ao Brasil (atualização do alemão e tradução para o português: Karl
Fouquet, a partir da edição de Andreas Kolbe, de 1547). São
Paulo: Sociedade Hans Staden, 1941.
__________.
Warhaftige Historia und beschreibung
eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in
der Newen welt América gelegen: vor und nach Christi geburt im Land zu Hessen
unbekant, biß uff dise 2 nechst vergangene jar, Da sie Hans Staden von Homberg
auß Hessen durch sein eygne erfassung erkant, Mit eyner vorrede D. John
Dryandri. Biblioteca virtual
de livros raros/USP.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre
o golfo de Benin e a Bahia. Salvador: Corrupio, 1980.
[1] Título completo da edição princeps,
de Andreas Kolbe: Warhaftige Historia und
beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser
Leuthen, in der Newen welt América gelegen: vor und nach Christi geburt im Land
zu Hessen unbekant, biß uff dise 2 nechst vergangene jar, Da sie Hans Staden von
Homberg auß Hessen durch sein eygne erfassung erkant, Mit eyner vorrede D. John
Dryandri; atualização do alemão da edição de Kolbe feita por Karl Fouquet: Warhaftige Historia und beschreibung eyner Landtschafft der Wilden,
Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newen welt América gelegen:
vor und nach Christi geburt im Land zu Hessen unbekant, biß uff dise 2 nechst
vergangene jar, Da sie Hans Staden von Homberg auß Hessen durch sein eygne
erfassung erkant, Mit eyner vorrede D. John Dryandri e tradução para o
português, também de Fouquet: História
verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres
humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus
Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de
Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria, e que agora traz a
público com essa impressão.
[2] A Alemanha, como a conhecemos hoje, só foi unificada no final do século
XIX ou, segundo algumas referências, após a queda do Muro de Berlim. Porém, ao
longo desse trabalho, utilizamos o termo Alemanha,
como todo historiador, para nos referirmos a acontecimentos e pessoas que
viveram nos locais que atualmente constituem o que se entende por Alemanha (cf.
BOLOGNINI 2003, p. 72).
[3] A partir da segunda edição, em 1926, passa a ser apresentado como
primeiro volume da série “Brasil Antigo”. Abaixo do título, aparece a inscrição
“texto ordenado literariamente por Monteiro Lobato”. Traz um breve “Prefácio”
de autor não especificado, que consideramos ser o próprio Lobato, esclarecendo
que se baseou nas notas de Theodoro Sampaio para grafar nomes próprios e termos
em tupiguarani: “Os nomes próprios e as palavras e frases em língua da terra,
que Staden fixou, aparecem corrigidas de acordo com a lição do mestre
doutíssimo que é Theodoro Sampaio, nas notas com que enriqueceu a tradução de
Alberto Löfgren, publicada em
[4] Título completo: Aventuras de Hans Staden: o homem que naufragou nas costas do Brasil em
1549 e esteve oito meses prisioneiro dos índios tupinambás narradas por dona
Benta aos seus netos Narizinho e Pedrinho e redigidas por Monteiro Lobato.
[5] Hans Staden, de Homberg, com os selvagens brasileiros ou o poder da fé e
da oração (observação: esta e
as demais traduções cujo tradutor não tenha sido especificado ao longo do texto
nem nas Referências Bibliográficas são nossas.
[6] Lembrar que América, inicialmente, referia-se apenas à colônia
portuguesa, ou seja, ao futuro Brasil, como o próprio título original do livro
de Staden pode confirmar. Apenas posteriormente passou a denominar o continente
todo, com as subdivisões geográficas América do Sul, América Central e América
do Norte e as subdivisões culturais América Latina e América Franco-Anglicana.
[7] Acordo assinado por Portugal e Espanha em 07
de junho de 1495 que estende as possessões de Portugal para a área localizada
até trezentas e setenta léguas a oeste do Cabo Verde; segundo o acordo
anterior, suas possessões iriam até cem léguas deste ponto (na época, uma légua
equivalia a aproximadamente
[8] O conceito de estado tem uma
acepção essencialmente política, não incluindo necessariamente a circunstância
material chamada nação, embora a unidade de uma nação possa contribuir para a coesão
política do estado – qualquer acepção que se dê ao termo estado, seja de
sociedade política, seja de autoridade suprema desta sociedade, o nível é
sempre especificamente político. Já os conceitos de nação e pátria divergem
do de estado por não conterem em si uma dimensão política e, ao mesmo tempo,
convergem entre si por estarem relacionados a aspectos materiais remotos que se
unem no todo social por meio dos indivíduos e do contexto que os envolve. O conceito de nação (do latim nasci:
nascer) inclui as características de nascimento de um indivíduo e tudo que isto
engloba – língua, hábitos e demais elementos culturais. A semelhança entre as
características culturais de dois indivíduos indicam que ambos detêm uma mesma
cultura, normalmente por terem nascido em um mesmo país, que lhes serve de pátria. País (do latim pagus: pago, região), por sua vez,
contém apenas uma dimensão geográfica, logo, diz respeito especificamente à
localização física de um estado. Já o
conceito de pátria (do latim pater: pai) se refere a geração comum e
semelhante e, ao mesmo tempo, sugere o local em que um determinado indivíduo
nasceu. O estabelecimento de afetividade para com o local de nascimento e a
semelhança cultural unem os que nascem e vivem num mesmo local (pátria) e são
integrantes de uma mesma cultura (nação). A existência de uma nação ou mais
nações reunidas em uma determinada pátria gera condições para a formação da
sociedade política (estado), que pressupõe não apenas o assentamento de uma ou
várias nações constituintes de uma pátria em uma determinada unidade
territorial (país), mas, também, independência política em relação aos demais
estados.
[9] Não existe pecado abaixo do Equador.
[10] Língua resultante da mistura de português com línguas indígenas, sendo
estas as predominantes.
[11] Este se encontra na Nota 01.
[12] primeiras testemunhas de sangue
[13] Da profunda miséria, clamo a ti.
[14] Do fundo de minha alma
[15] germanidade
[16] Da mesma forma que vai ser importante para
Lobato convencer os próprios brasileiros das virtudes, ou não selvageria, de
seus eleitos ancestrais.
[17] As viagens
[18] Terra e povo
[19] Trabalhamos com a 2a. edição,
datada de 1926.
[20] Trabalhamos com a edição de 1930, que é a
reedição do texto de 1900, o qual, por sua vez, teve como texto de partida a 2a
edição em alemão, publicada em Marburg em 1557.
[21] Trabalhamos com a edição de 1941 da Sociedade
Hans Staden de São Paulo, que teve como texto de partida a 2a edição
em alemão, editada em Marburg, em 1557, por Kolbe; essa edição de 1941 traz o
alemão atualizado por Fouquet, conforme Nota 01.
[22] O alemão é uma língua V2 (nas orações
afirmativas, o verbo aparece sempre como segundo elemento), apresenta
declinação, verbos prefixionados separáveis e todos os substantivos são
escritos com inicial maiúscula, entre outras diferenças em relação à língua
portuguesa.
[23] Sem tradução neste contexto.
[24] Essa hipótese se baseia no fato de que o
próprio Lobato afirmou ter consultado a tradução de Löfgren, conforme Nota 03.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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