Dra. Vanete Santana-Dezmann
Monteiro Lobato já era escritor
reconhecido, tradutor e editor quando, em 1925, em sociedade com Octales
Marcondes, fundou a Companhia Editora Nacional, cuja primeira publicação foi Meu
cativeiro entre os selvagens do Brasil – uma versão modernizada feita pelo próprio Lobato da primeira
parte do livro Warhaftige Historia
(Verdadeira História), publicado em 1557 em Marburg por de Hans Staden, um
viajante que esteve duas vezes em terras que viriam a constituir o Brasil.
Em 1927, vem a público Aventuras de
Hans Staden, uma história infantil escrita por Lobato com base na história
contada por Staden e narrada a partir da óptica de D. Benta, personagem criada
em 1920 como avó de Narizinho. A partir de então, seu trabalho de criação
literária baseada ou inspirada em obras produzidas em outros idiomas e culturas
se torna tão importante quanto a direção de sua editora, a produção de artigos
para jornais e revistas e a edição de livros próprios e de outros autores.
Da crítica às traduções das histórias
para crianças publicadas no Brasil por seus antecessores, advém-lhe a ideia de
produzir literatura infantil. De acordo com Lobato, as fábulas traduzidas para
o português eram “pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e
impenetráveis”. Sua intenção era criar fábulas com animais genuinamente
brasileiros, iniciando, assim, uma literatura infantil brasileira.
Seu descontentamento com as traduções de
obras infantis o acompanharia por anos. Os contos dos irmãos Grimm editados no
Brasil pela Garnier, por exemplo, mereceram sua crítica por se apresentarem em
português europeu – era preciso “abrasileirar a linguagem”, dizia Lobato. Neste
sentido, pode-se considerar que ele trabalhou pelo enriquecimento da literatura
infantil brasileira e pela aceitação da modalidade do português falado no
Brasil mais do que qualquer outro editor ou escritor. Ele resolveu investir
nesta área ao constatar não apenas a má qualidade das traduções das histórias
infantis, mas também a carência de obras para crianças apresentada pelo mercado
editorial nacional, no qual não encontrava livros para seus próprios filhos.
Sua primeira ideia, então, foi “vestir
à nacional” as velhas fábulas de Esopo e de La Fontaine.
Posteriormente, teve a ideia de publicar,
reescritas em linguagem mais leve, as histórias infantis que já haviam sido traduzidas
por Jansen Müler – Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson
Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do
celebérrimo Barão de Münchhausen (1891) e Don Quixote de La Mancha (1901).
Assim, indo além das fábulas, Lobato constituiu o cânone da literatura infantil
brasileira, enriquecendo-a por obras de diversas culturas. Por vezes, como se
pode perceber, o que ele fez foi recontar segundo sua ideologia e senso
estético – e não apenas sua concepção de literatura infantil – textos já
traduzidos.
Do mesmo modo que criticava a visão
sobre o que se identificava como Brasil expressa por estrangeiros, conforme se
vê sua versão de Staden para o público infantil, Lobato também criticava a
perspectiva francesa da literatura brasileira – o padrão, em termos artísticos,
no século XIX. Ao mesmo tempo, seguindo uma tradição histórica, propugnava a
fusão do que havia de melhor na literatura universal em termos de forma e
conteúdo, para fortalecer e enriquecer a literatura nacional, criando-se, a
partir da assimilação do estrangeiro, uma literatura autenticamente brasileira
– até o ponto em que a autenticidade em literatura é possível –, ao transportar
para o Brasil uma prática comum e milenar voltada para a construção de culturas
nacionais. É neste sentido que, por exemplo, propõe novas traduções de obras já
publicadas em português e o abandono do modelo francês – “literarizante”,
segundo sua concepção – em favor de uma literatura com caracteres nacionais e
expressa em português brasileiro, fluente e compreensível, sobretudo nas obras
destinadas ao público infantil. Encomenda, então, contos extraídos de peças de William
Shakespeare, tal como Rei Lear, e uma versão brasileira de Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes – tudo escrito para leitores como seu filho
Nelo e os demais “nelos” do Brasil; sua preocupação com a adequação da
linguagem ao português brasileiro e ao público infantil era constante. Posteriormente,
seleciona obras mais abrangentes em termos culturais, disponibilizando às
crianças brasileiras um pouco mais do cânone da literatura universal: além de Shakespeare
e Cervantes, interessavam-lhe Jonathan Swift e Daniel Defoe.
Suas
preocupações com a linguagem e o cânone, porém, eram antigas; ele não poupava
críticas ao mercado editorial brasileiro, que errava tanto na escolha dos
títulos a serem publicados quanto na linguagem – conforme continuou criticando
– e se propunha, inicialmente em caráter experimental, a fazer algo mais adequado
às crianças brasileiras, pois os textos então disponíveis às crianças –
basicamente, fábulas –, eram de difícil compreensão.
Ele mesmo tomou o enredo de algumas fábulas de La Fontaine e os vestiu “à sua
moda”. Percebemos, assim, sua liberdade ao lidar com os textos de outros
autores, permitindo-se fazer as adaptações que considerava necessárias para que
atendesse aos objetivos que lhes atribuía.
Recuando ainda mais no tempo,
encontramos um Lobato interessado em construir heróis brasileiros seguindo os
moldes do romance histórico de Walter Scott – autor de Ivanhoé –, modernizando-o, porém, de acordo com o modelo de Rudyard
Kipling – autor de Mogli. Neste
sentido, pode-se afirmar que Lobato anseia por criar um passado nobre para o
Brasil, apresentando os bandeirantes como heróis, conforme fizeram os
românticos com os godos, por exemplo, na Europa ao tentar construir
retoricamente uma origem nobre para suas nações. Lobato não queria, porém,
incorrer no erro de copiar um modelo que não se encaixava ao contexto nacional,
como haviam feito os românticos brasileiros. A saída encontrada seria, pois,
imitar um escritor que considerava moderno; daí a importância do estilo de
Kipling: “Ando a estudar a história do Brasil. Há nela bons blocos de mármore a
serem entalhados. Os bandeirantes,
Borba Gato, Fernão Dias – que bandidos soberbos! (...) Um romance histórico feito
naturalisticamente! Já notaste que o romance histórico nem sequer ainda
balbuciou entre nós? Imagino-o à maneira de Walter Scott, mas com as tintas
modernas de Kipling.”. Tivesse Lobato mais tempo ou tivesse o Brasil
mais Lobatos, não estaríamos hoje tão carentes de heróis nacionais...
Observação: as informações apresentadas neste texto se encontram
na correspondência entre Monteiro Lobato e o tradutor e seu amigo Godofredo
Rangel, registrada em LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Vol. I e II. São Paulo: Brasiliense, 1959.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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