26.1.21

O RETRATO FALADO DO “RACISMO NA OBRA INFANTIL DE LOBATO"

 

Dra. Vanete Santana-Dezmann

Este artigo foi concluído em 22.01.20121 e faz parte do livro Lobato: homem e livros – II Jornada Monteiro Lobato USP-JGU, que se encontra no prelo.



Página de "O negrinho".



Introdução

 

            A origem da literatura infantil ocidental remonta à Europa do século XVII, quando os livros para crianças se destinavam não a diverti-las, mas exclusivamente a educá-las. Durante o século seguinte, elas passaram a se divertir com livros de aventura que não se destinavam a uma faixa etária específica, tais como Robinson Crusoe (1719, título homônimo no Brasil), de Daniel Defoe, e Gulliver's Travels (1726, publicado no Brasil com o título de As viagens de Gulliver), de Jonathan Swift. O livro de cantigas de ninar em quadrinhas Mother Goose's Melody (no Brasil, Mamãe Gansa), publicado em Londres por volta de 1760 por John Newbery – este, sim, um livro para crianças – tornou-se um dos primeiros best-sellers do gênero.




Capa de Mamãe Gansa.


Dentre as mais famosas histórias conhecidas até hoje, encontram-se alguns dos contos de fadas da coletânea de contos populares para a família dos irmãos Grimm (Wilhelm e Jacob), publicada em 1812 a partir da catalogação de lendas recolhidas do folclore germânico - catalogação que fazia parte do projeto romântico de construção de uma identidade nacional alemã. Foi apenas na segunda metade do século XIX, porém, que as crianças começam a receber atenção especial por parte da literatura, constituindo-se Alice's Adventures in Wonderland (1865, no Brasil, Alice no país das maravilhas), de Lewis Carroll, um dos melhores exemplos. Tanto nos contos dos irmãos Grimm – alguns de cunho pedagógico, como a história da Chapeuzinho Vermelho – quanto na história de Alice, figuram criaturas e objetos encantados e animais falantes que interagem com a criança em um cenário irreal, característico do mundo do faz-de-conta.

Ainda no século XIX, o mundo do faz-de-conta é transportando para o Brasil simultaneamente à literatura infantil de cunho declaradamente pedagógico, como as desventuras de Struwwelpeter e outras crianças igualmente mal-educadas que, a cada página, eram exemplarmente castigadas. Der Struwwelpeter oder lustige Geschichten und drollige Bilder für Kinder von 3 bis 6 Jahren von Heirinch Hoffmann (Struwwelpeter ou histórias engraçadas e lindos desenhos para crianças de 3 a 6 anos do Dr. Heinrich Hoffmann, em tradução literal) foi publicado originalmente na Alemanha em 1844 e chegou ao Brasil em 1860, por meio da adaptação empreendida pelo desembargador Henrique Velloso da Oliveira (1804-1861) como João Felpudo – Histórias alegres para crianças travessas com vinte e quatro pinturas esquisitas[1]. O livro se tornou tão famoso que mereceu várias publicações em diferentes traduções e adaptações, inclusive do poeta Guilherme de Almeida[2]. Já os contos de caráter infantil dos irmãos Grimm foram publicados ao lado de contos de Hans Christian Andersen e Charles Perrault na seleção de Alberto Figueiredo Pimentel Contos da carochinha, em 1896, reunindo 61 textos.

Também data da segunda metade do século XIX a produção de literatura infantil brasileira, embora esta seguisse o modelo europeu e competisse no mercado nacional com uma maioria de obras traduzidas e/ou livremente adaptadas do inglês, francês e alemão. Livro das crianças (Zalina Rolim, 1897), Contos infantis (Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira, 1886), Histórias da terra (Júlia Lopes de Almeida, 1907) e Era uma vez (Júlia Lopes de Almeida, 1917) são exemplos da publicação nacional da época. Enquanto isso, no restante do mundo ocidental e Américas, as histórias folclóricas continuavam a ser coletadas, publicadas, traduzidas e popularizadas. O caráter “fantástico” destas histórias continuava sendo reproduzido por criações novas como, por exemplo, O mágico de Oz, de Frank Baum, publicado em 1900 nos Estados Unidos.

O marco mais importante da literatura infantil brasileira, original e adaptada, que gera a mudança nos cânones que regiam tal produção, separando da moderna literatura infantil as obras de caráter europeu aparece em 1920: A menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato. Este foi o primeiro de sua extensa lista de livros para crianças. A partir de então, Lobato continuou a se dedicar regularmente à literatura infantil, com a publicação de 23 títulos até 1947. Em 1931, ele reuniu seus primeiros títulos em Reinações de Narizinho. Desde então, estava completo o Sítio do Picapau Amarelo que conhecemos ainda hoje, com todas as personagens que representam para a cultura brasileira o mesmo que as princesas dos contos de fada representam para a cultura ocidental e as personagens de Walt Disney para a cultura nos Estados Unidos. Lobato é nossa versão dos irmãos Grimm, de Andersen e Perrault. Em uma comparação mais moderna, Lobato é nosso Disney e o Sítio do Picapau Amarelo nossa Disneylândia. Tivesse o Brasil à época de Lobato uma indústria cinematográfica, as personagens que povoam o Sitio e nossas memórias seriam hoje conhecidas em todo o mundo.

            Embora suas personagens não sejam mundialmente famosas, o fato inquestionável é que Lobato é um divisor de águas na história cultural brasileira[3] e a qualidade de sua obra infantil é atestada por sua perenidade; nenhuma personagem de toda a literatura brasileira, infantil ou adulta, experimentou nem experimenta vida tão longa quanto a de Narizinho; sua mãe de criação, Tia Nastácia; a boneca que ela lhe fez com retalhos de tecido e recheio de macela, Emília; sua avó D. Benta; seu primo Pedrinho e o visconde de sabugo de milho Sabugosa. Nem mesmo as acusações de racismo, que começaram a circular na primeira década do século XXI, foram capazes de abalar as boas recordações que gerações e gerações de brasileiros guardam das personagens do Sítio. No entanto, longe de serem desprezadas, tais acusações merecem atenção e análise, afinal, uma obra que deprecie um ser humano apenas com base em sua aparência física e a despeito de suas qualidades de caráter não merece ocupar a posição que a obra infantil de Lobato ocupa em nossa cultura. Partindo-se dessa premissa, faz-se necessária e premente uma análise – amparada por fatos – de tais acusações.


 

1. O racismo e a literatura infantil publicada no Brasil no início do século XX


Nas reflexões que têm sido tecidas nas últimas décadas sobre as representações do negro na literatura destinada a crianças publicada no Brasil no início do século XX, destacam-se as apontadas por um dos primeiros artigos acadêmicos publicados sobre o tema[4]: o papel secundário das personagens negras, que apareceriam apenas como parte da cena doméstica ou de cenas características do período escravocrata e que, quando recebem destaque, aparecem apenas “mitificadas” – na figura de “contadores de histórias” ou de “pretos velhos” e “pretas velhas”, cujo corpo, que se desejava embranquecer, era representado de modo animalesco.

Tais caracterizações atribuídas à representação do negro na literatura infantil publicada no Brasil no início do século XX têm sido apontadas como demonstrações do racismo dos autores, sendo todas exemplificadas por excertos pinçados esparsamente da obra infantil de Lobato. A ausência do negro na literatura infantil até o início do século XX também é apontada como demonstração de racismo, juntamente com o “embranquecimento do leitor infantil” brasileiro da época.

As referidas reflexões, frisemos, baseiam-se em um corpus composto por 17 livros publicados entre 1900 e 1937, embora mais de uma centena de títulos, entre produção original, adaptação e tradução, circulassem no Brasil no período selecionado[5].

Considerando que o objetivo inicial da pesquisa que deu origem ao referido artigo era “compreender a representação da infância nas primeiras décadas do século XX (...) de maneira a apreender os discursos sobre a infância em circulação, naquele momento histórico”[6] e que os critérios adotados para a seleção dos 17 livros foram terem sido postos e estarem em circulação no referido período – os livros deveriam ter tido uma primeira e, no mínimo, uma segunda edição entre 1900 e 1937 – e terem sido citados por Regina Zilberman e Marisa Lajolo[7] (1985); Nelly Novaes Coelho[8] (1981) e  Lenyra Fracarolli[9] (1953)[10], esclarecemos que os 1.843 títulos que Fracarolli cataloga foram publicados no Brasil e, alguns, em Portugal entre 1945 e 1950. Sendo assim, o catálogo não pode ter contribuído com nenhum título para a pesquisa. Além disso, se o objetivo era “apreender os discursos sobre a infância em circulação, naquele momento histórico”, não deveriam ter sido selecionados apenas livros que tiveram a primeira edição naquele período, mas também os que foram publicados no século XIX e continuaram fazendo parte do catálogo das editoras nas quatro primeiras décadas do século XX.

Aproveitamos o ensejo para destacar mais um lapso que precisa ser devidamente esclarecido. Embora a pesquisadora afirme, ao justificar o recorte temporal de sua pesquisa, que sua definição “alicerçou-se no fato de que, nesse momento [1920], a produção literária dirigida ao leitor infantil experimentou não apenas uma expansão significativa de títulos (Lajolo; Zilberman, 1985), mas também uma mudança nos cânones que regiam tal produção. Mudança esta produzida no diálogo com as transformações experimentadas nas práticas culturais mais amplas.”[11], é preciso ressaltar o já citado fato de que tal mudança foi produzida pelo sucesso de A menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato, o primeiro autor brasileiro a notar o descompasso entre os temas e, sobretudo, a linguagem predominantes nos livros infantis publicados até então e as demandas da criança brasileira leitora e ouvinte de histórias e o primeiro a se dedicar a construir um mercado editorial brasileiro para o Brasil.






De fato, como a pesquisadora afirma, “a partir da década de 1920, em consonância com as transformações experimentadas no campo cultural mais amplo, na produção cultural destinada ao público infantil busca-se falar do país remetendo-se a sua identidade cultural. Procurava-se escrever à criança brasileira na sua linguagem, sobre sua gente, suas raízes raciais e culturais. Tal temática tornou-se preocupação presente em grande parte dos autores voltados para esse público.”[12], mas o propulsor desse movimento foi Lobato e as referidas “transformações experimentadas no campo cultural mais amplo” só fazem sentido no contexto da época quando entendidas como a revolução que Lobato provocou no mercado editorial nacional e suas consequências para os rumos que a literatura – adulta e infantil – tomou a partir de então.

Não é sem razão que Lobato é reconhecido como o criador da moderna literatura infantil brasileira por toda a literatura especializada no assunto. Tentar escamotear a atuação determinante de Lobato neste cenário é, no mínimo, sinal de absoluto desconhecimento da literatura especializada sobre o tema.  Seu trabalho em torno de um projeto de nação, que deixou marcas indeléveis na formação da literatura, inclusive por facilitar sua materialização e circulação, já foi sobejamente apresentado e analisado inclusive pelas autoras citadas pela própria pesquisadora, não podendo, portanto, ter escapado a sua observação.


 

2. A estreia do negro na literatura infantil no Brasil


A partir da leitura do item intitulado “O negro na literatura infantil: da ausência à mitificação” [13] e do final do que o precede, depreende-se que apenas a partir de 1900 personagens negras são introduzidas na literatura infantil em circulação no Brasil, porém, no terceiro capítulo de Der Struwwelpeter, encontramos “Die Geschichte von den schwarzen Buben”[14] (A história dos meninos negros, em tradução literal), intitulada, na adaptação de Guilherme de Almeida, “O Negrinho”.

Enganam-se os que pensam que se tratava de uma história racista contra uma criança de etnia negra; ao contrário: “O Negrinho” foi escrita para ensinar as crianças brancas – o típico leitor infantil até bem recentemente, para desonra de nosso sistema educacional – a não caçoarem das crianças negras e, de modo geral, a não caçoarem de ninguém. Trata-se da história de três meninos brancos que importunavam um garotinho única e exclusivamente por ele ser negro e ter boas maneiras. Interpelados por um escrivão, caçoam deste também: “Olhe o velhote de saia”. De fato, não tinham respeito por ninguém. Como castigo, são mergulhados em um pote de tinta e ficam mais negros do que o garotinho de quem caçoavam. Note-se que a punição não é serem "transformados" em negro, mas, sim, serem transformados naquilo que condenavam e julgavam ser motivo de chacota. Se tivessem caçoado de alguém por ser extremamente magro, o castigo teria sido se tornarem extremamente magros. Eis um exemplo de história que, juntamente com as demais apresentadas no livro Der Struwwelpeter e outros pedagógicos da época, bem como em todos os contos dos Grimm, Perrault e Andersen com fundo moralizante e, inclusive, as fábulas de Esopo, contradiz a premissa sobre a literatura infantil a partir da qual a pesquisadora tece toda a análise de seu corpus: “De maneira característica, a literatura infantil definiu-se historicamente pela formulação e transmissão de visões de mundo, assim como modelos de gostos, ações, comportamentos a serem reproduzidos pelo leitor.”[15]. O que essas histórias que configuram o padrão da literatura infantil ocidental desde seu berço apresentam é justamente modelos de gostos e, sobretudo, comportamentos que os leitores-mirins não deveriam reproduzir.



Página de "O negrinho".


Conforme citado acima, a primeira publicação no Brasil de “O Negrinho” de que se tem notícia data de 1860, quatro décadas antes de 1900. Ou seja, não só já existia ao menos uma história extremamente popular com personagem negra circulando no Brasil no irromper da segunda metade do século XIX, como também a personagem negra era defendida e seus importunadores exemplarmente punidos, para que os leitores – potenciais chacoteadores de negros – aprendessem a lição. Sim, havia preconceito contra negros, mas, sim, havia ações, ainda que por meio de um exemplar da literatura pedagógica importada da Alemanha, no sentido de contê-lo. Então, se o objetivo da pesquisa aqui focalizada era compreender a representação da infância nas primeiras décadas do século XX de maneira a apreender os discursos sobre a infância em circulação à época, conforme fica patente acima, “O Negrinho” deveria ter sido incluído no corpus, pois, dado o objetivo, voltamos a reforçar que não bastava considerar os livros que tiveram sua primeira edição no período; era necessário considerar também os publicados anteriormente e que continuavam fazendo parte do catálogo das editoras, ou seja, continuavam sendo publicados, indício de que continuavam sendo lidos e, por conseguinte, faziam parte dos discursos sobre a infância naquele momento.

A despeito da circulação de “O Negrinho” entre as crianças leitoras brasileiras desde 1860, o artigo aqui focalizado constrói um histórico da literatura infantil de modo tal que se conclua que personagens negras começaram a aparecer na literatura infantil apenas a partir de 1900. A crítica, então, é deslocada da ausência para a presença apenas como figurante: “Nos textos pesquisados, produzidos entre 1900 e 1920, o negro era um personagem quase ausente, ou referido ocasionalmente como parte da cena doméstica. Era personagem mudo, desprovido de uma caracterização que fosse além da referência racial. Ou então personagem presente nos contos que relatavam o período escravocrata...”[16].

Mais uma vez, é Lobato quem rompe esta barreira com seu conto Negrinha, também de 1920. Embora o livro não fosse ilustrado, o que sugere se destinar ao público adulto, o fato é que, tal como Robinson Crusoé e As viagens de Gulliver continuavam a ser lidos por crianças, Negrinha, cuja protagonista é uma criança que se encanta por uma boneca, podia muito bem interessar ao público infantil.  E quanta pedagogia o livro traz! Quanto “o que não fazer” ele ensina!

Este novo formato de livro pedagógico trouxe duas novidades: não havia ao final um castigo para o mau-comportamento e o malcomportado deixava de ser exclusivamente a criança e passava a ser, sobretudo, o adulto, inclusive bom católico, com lugar reservado no camarote da igreja e tudo. Seria Negrinha um livro pedagógico também para adultos? – poderíamos nos perguntar. Careceriam também os adultos brasileiros dos anos 20 de uma boa lição de moral, daquele tipo que nasce no restinho de humanidade que possa se encontrar escondido em algum alvéolo de seu coração e desabrocha em sua consciência? É a este restinho de humanidade que Negrinha apela, deixando que a própria voz da consciência aponte o erro – uma das características às quais o sucesso de Lobato entre as crianças se deve é justamente tratá-las como pessoas inteligentes, às quais meia-palavra deveria bastar. Eis, então, mais um bom exemplar de literatura pedagógica apresentando justamente o modelo de comportamento que não deveria – e não deve – ser reproduzido por leitores-mirins nem açus[17].

 Ao reconhecer a estreia do negro como personagem de fato na literatura infantil do Brasil, a crítica recai sobre o papel que desempenhava nas histórias: “O negro constituía personagem quase mítico, cuja inserção ao longo da narrativa destaca-se e diferencia-se dos demais personagens.”[18]. Segundo o artigo, às personagens negras eram reservados exclusivamente papeis estereotipados.


 

3. A estereotipia e a literatura infantil publicada no Brasil no início do século XX


a) Contadores e contadoras de histórias

Para tratar deste tema, a já anunciada estereotipia das personagens negras é retomada: “Personagem sempre presente, mesmo que como coadjuvante, nas narrativas destinadas à criança do período, o negro surgia revestido de uma estereotipia que se repete basicamente em todos os textos analisados.”[19] – “todos”, lembremo-nos, restringem-se a 17 pinçados dentre mais de uma centena.

            Afiando a descrição das personagens negras, a pesquisadora afirma que são relegadas ao passado, representando o atraso: “Enquanto a modernidade, associada à urbanidade, ao progresso, à técnica, e à ruptura, era representada pelos personagens brancos adultos, os negros era (sic) relacionados a significantes opostos, como tradição e ignorância, universo rural e passado.”[20]

Por uma questão de verossimilhança[21], tão cara à construção do texto narrativo, era de se imaginar que as personagens negras não aparecessem em posição de comando ou que exigisse alguma formação acadêmica. No reino do faz-de-conta, porém, pode-se deixar a verossimilhança de lado, tenderiam alguns a argumentar. O fato, porém, é que a verossimilhança é fundamental mesmo na ficção científica, nos contos classificados como realismo fantástico e nos contos de fadas, nos quais o autor tem o trabalho adicional de construir um novo universo dentro do qual o “fantástico” faz sentido, ou seja, apresenta verossimilhança. Então não seria possível ainda na primeira metade do século XX, tão pouco tempo após a abolição da subjugação do negro ao trabalho escravo no Brasil, construir-se um mundo de “faz de conta” em que uma personagem negra apresentasse a mesma relevância que uma personagem branca? Se o autor fosse destituído de uma boa dose de preconceito racial, senão completamente despido dele, e se desse ao trabalho de criar um universo dentro do qual isso fosse possível, seria sim. De fato, isso foi feito, conforme se pode constatar no exemplo que se segue:

 

Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?

(...)

- Só conheço duas criaturas com condição de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas. A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

- Quem são essas maravilhas?

- Dona Benta e Tia Nastácia – respondeu o rei Carol -, as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Picapau Amarelo, lá na América do Sul. Propomos que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

- Muito bem! – aprovou o Duque de Windsor, (...) também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom senso de Tia Nastácia o mundo poderá ser consertado.

(...)

Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom Senso na Conferência da Paz de 1945.[22]

 

 

E, sim, mais uma vez foi Lobato quem quebrou o paradigma, deixando isso patente em A reforma da natureza, publicado em 1941, e em A chave do tamanho, publicado no ano seguinte. O universo fantástico, em que não há distinção entre negros e brancos; homens e mulheres; crianças, adultos e idosos; mitologia clássica e brasileira; gente e bonecos; fadas, duendes, sacis, mulas-sem-cabeça... é justamente o Sítio do Picapau Amarelo.




 Voltando ao artigo, encontramos a afirmação de que, a partir da década de 1930, as personagens negras se tornam mais frequentes nas histórias infantis, mas continuam estereotipadas:

É principalmente a partir da década de 1930 que torna-se (sic) maciça a presença, na produção literária destinada à criança, de personagens negros, sobretudo como contadores de histórias, demonstrando a forte presença de traços associados à cultura negra, como a oralidade, a transmissão de histórias de origem africana. Tais histórias eram representadas como carregadas de valor afetivo, contadas por pretas velhas, associadas à ingenuidade, ao primitivismo, apresentando uma estereotipia e simplificação características. É na perspectiva de resgate folclorizado das raízes nacionais que os contadores de história negros eram recuperados nas narrativas, como depositários de uma tradição situada no passado, a ser registrada e resgatada através da literatura infantil.[23]

            O exemplo extraído da obra de Lobato para ilustrar essa estereotipia traz os comentários de Pedrinho, Emília e D. Benta sobre as histórias contadas por Tia Nastácia em um livro publicado em 1937 que não poderia receber outro título senão Histórias de Tia Nastácia:

 

— Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um para o outro ela deve saber. Estou com idéia de espremer Tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela, afirma Pedrinho.

Ao ouvir essas histórias, as crianças reagiram, apontando as incoerências das narrativas orais. Na fala de Emília, esta explicitava:

— Só aturo estas histórias como estudo da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras — coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto. (1937, p. 31)

Ante a reação das crianças diante de suas histórias, Tia Nastácia perdeu o posto de contadora, reassumindo seu lugar de cozinheira, sendo substituída por Dona Benta, que com auxílio dos livros, “sabe contar histórias de verdade”.

Na visão de Dona Benta:

Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda. (Lobato, 1937, p. 30)[24]

 

Tais comentários são considerados pela pesquisadora como irônicos, característicos do desprezo dispensado aos contos de Tia Nastácia, aqui exemplificando as histórias populares contadas pelas personagens negras em outras histórias infantis. Lobato desprezava tanto essas histórias que lhes dedica dois volumes inteiros de sua obra: o já referido Histórias de Tia Nastácia, que traz nada menos do que 44 contos, e O Saci, publicado em 1921, em que Tio Barnabé assume o papel de contador de história e resgata ao longo dos 28 capítulos grande parte do folclore brasileiro, levando a todo o território nacional a comovente história do negrinho do pastoreio, mais um bom espécime da literatura pedagógica que ensina justamente o que não fazer ao mostrar que o injustiçado acaba por receber uma recompensa que seu detrator almejaria para si próprio.

Se Lobato critica as histórias populares contadas por Tia Nastácia, ele o faz por contrapor a cultura letrada, representada em Histórias de Tia Nastácia por Dona Benta, à cultura popular, representada por Tia Nastácia – e o faz justamente para denunciar o analfabetismo, que, embora atingisse grande parte da população branca, fazia seu maior número de vítimas entre a população negra. Então, a atribuição a D. Benta do papel de representante da cultura letrada e a Tia Nastácia do papel de representante da cultura popular se deve não a um suposto caráter racista do autor, mas tão somente a uma questão de verossimilhança dentro do contexto social e cultural da época, conforme se pode perceber a partir da leitura do excerto abaixo.


As histórias que correm entre nosso povo são reflexos da era mais barbaresca da Europa. Os colonizadores portugueses trouxeram estas histórias e soltaram-nas por aqui – e o povo as vai repetindo, sobretudo na roça. A mentalidade de nossa gente roceira está ainda muito próxima da dos primeiros colonizadores.

– Por que, vovó?

– Por causa do analfabetismo. Como não sabem ler, só entra na cabeça dos homens do povo o que os outros contam – e os outros só contam o que ouviram. A coisa vem assim num rosário de pais a filhos. Só quem sabe ler e lê os bons livros, é que se põe de acordo com os progressos que as ciências trouxeram ao mundo (Lobato 1968:80-81)

 

O objetivo de Lobato em Histórias de Tia Nastácia, portanto, não é apenas trazer a cultura popular para o alcance do leitor infantil do início do século; tão pouco, menosprezar Tia Nastácia e a cultura popular, mas, sim, também criticar a situação vigente e destacar a importância da alfabetização para o progresso de uma nação.   Não é sem razão que sua frase mais famosa é “Um país se faz com homens e livros”.

Com relação às falas pinçadas pela pesquisadora e acima reproduzidas, é preciso ficar claro que as concepções que elas expressam não necessariamente correspondem às concepções do autor, no caso, Lobato. Por vezes, uma ou outra fala pode até representar a voz do autor. Existem casos na literatura em que uma personagem pode ser considerada alter ego do autor, como parece ocorrer com Sérgio em de O Ateneu (1888), de Raul Pompéia. De modo geral, porém, as personagens, principalmente quando contraditórias entre si, representam vozes de integrantes do universo retratado no interior do livro. Não é porque um determinado autor escreveu as falas de uma determinada personagem, que estas necessariamente representam as concepções do autor. Prova disso é que o mesmo autor, no mesmo livro, pode criar outras personagens que falam o oposto. Voltaremos a esse tema posteriormente. Por ora, para tirar a dúvida no caso aqui exposto, basta se confrontar o teor das falas das personagens de Lobato com as atitudes de Lobato: teria ele se dedicado a recolher, registrar, mandar ilustrar, imprimir e distribuir em todo o país por meio de dois livros completos um conteúdo que ele desprezasse tanto?

 

b. “Pretos velhos” e “pretas velhas”

            Com relação à presença dos “pretos velhos” e “pretas velhas” nas histórias que circulavam no início do século XX entre crianças e adultos, a crítica da pesquisadora recai sobre o fato de tais personagens serem “idosas”, permanecendo os jovens de etnia negra ausentes:

De todas as narrativas investigadas, o negro ou negra jovem eram absolutamente ausentes, revelando uma exclusão social característica do período. O negro jovem era percebido como potencialmente perigoso, fonte de agitação, insubordinação ou vagabundagem. O resgate que se pretendia nas narrativas, tanto endereçadas ao público infantil quanto ao adulto, não era o do negro concreto, marginalizado do processo de modernização. Situado no passado, o negro era representante de uma relação marcada por subserviência e docilidade.[25]

           

Já que a pesquisadora faz referência a narrativas “endereçadas ao público adulto”, poderia ter citado Manoel João de Freitas, personagem real que aparece no conto “O 22 da Marajó”[26], que integra o livro A onda verde, publicado por Lobato há exatos 100 anos. Juntamente com o Estrepolia, o Zé da Gamboa e o Dente de Ouro – estes talvez apenas personagens fictícias –, Trinca-Espinhas, como era chamado, fazia parte do grupo de capoeiras “safos” que marcavam presença, por volta de 1880, no Largo de São Francisco, no Rio de Janeiro, então capital do Império. Dentre todos os adjetivos do Aurélio, “subserviência” e “docilidade” são os que menos os descreveriam.   

O exemplo citado pela pesquisadora, porém, foi pinçado de Memórias da Emília, publicado em 1936, e deve seu destaque ao sugerido “requinte de crueldade de Lobato”.

[Emília], ao relatar ao Anjinho caído do céu que a vaca era um animal precioso para o homem e que, no entanto, o termo “vaca” era usado de forma depreciativa, na linguagem cotidiana, comentava:

Pois muito bem. A vaca é tudo isso que acabo de dizer e muito mais. No entanto, se você comparar a mais suja negra de rua com uma vaca dizendo: “Você é uma vaca”, a negra rompe num escândalo medonho e se estiver armada de revólver, dá tiro. (1936, p. 14)

Nos textos analisados, esta constituiu a única referência ao negro da cidade, situado no presente – a negra suja de rua, armada de revólver, pronta a fazer um escândalo. Revela-se aí a descontinuidade entre a representação da negra velha, afetiva e subserviente, e a negra de rua, escandalosa e insolente. Estabelece-se uma oposição semanticamente expressa entre a negra de rua versus a negra velha da roça. O resgate mitificado do passado aliava-se à negação e exclusão no presente, no retrato do negro na literatura infantil.

O negro e a negra velha da roça eram remetidos na literatura infantil a um espaço geograficamente situado à margem, não inseridos nas relações urbanas, mas habitantes de um locus simbólico distante, remanescente de um Brasil agrário que se queria ora resgatar, ora sepultar. Os negros habitavam as tocas nos confins do mato onde persistiam com suas crenças, enquanto viviam e faziam sobreviver suas tradições, como as práticas religiosas, vistas como feitiçaria pelos personagens brancos.[27]

           




Não consta, porém, em nenhuma das histórias envolvendo as personagens do “Sítio” que Tia Nastácia tenha habitado em algum momento uma toca nos confins do mato. Ao contrário, ela tinha um quarto na sede do Sítio do Picapau Amarelo[28] e se hospedava nos mesmos hotéis que D. Benta em sua suas viagens a Nova Iorque[29] e à Europa[30] – que não se localizam em nenhuma “margem” do ambiente urbano –, onde contracena com os mais importantes estadistas da história do mundo real. Tio Barnabé também vivia em uma casa localizada no “Sítio”. Embora ambos habitassem o locus simbólico em que o Sítio do Picapau Amarelo se constitui, enquanto universo do faz-de-conta, inseriam-se – sobretudo Tia Nastácia, uma vez que Lobato eleva as mulheres a um patamar superior ao que de fato ocupavam na sociedade da época – nas relações urbanas tanto quanto as demais personagens do Sítio. Além disso, Lobato não atribui a nenhum dos dois práticas religiosas consideradas feitiçaria. Tais descrições podem até se comprovarem na obra de outros autores, mas não na de Lobato. Por que, então, não se lança mão da obra de Lobato neste momento como exemplo da exceção que ela de fato constitui?  O próprio exemplo pinçado apresenta Tio Barnabé como exceção:

 

— Pois seu Pedrinho é uma coisa que branco da cidade nega, diz que não há, mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto Saci. Nunca vi, mas sei de quem viu... o Tio Barnabé, fale com ele. Negro sabido tá aí! Entende de todas as feitiçarias – disse Tia Nastácia. (Lobato, 1921, p. 23).[31] (Destaque nosso.)

           

Como o próprio Tio Barnabé afirma neste excerto de O saci, outros negros já viram saci, mas ele nunca viu. Além disso, conforme destacado antes, ele não vive no mato. Ou seja, ele não tem nenhuma das características que constituem o preto velho – ao contrário, ele é apresentado na obra de Lobato como a antítese da representação estereotipada do negro comum à literatura da época, segundo a descrição da pesquisadora. Inclusive, Tia Nastácia emprega o verbo “entender” ao estabelecer relação entre Tio Barnabé e as feitiçarias. “Entender” é diferente de praticar. Uma pessoa pode entender profundamente de catolicismo sem, necessariamente, ser católica; ela pode, por exemplo, ter estudado Teologia.

            Voltando-nos para o excerto extraído pela pesquisadora de No país da formiga, de Menotti del Picchia, publicado em 1932, temos, um exemplo concreto do tipo de conteúdo presente nos livros que eram lidos pelo público para o qual Lobato passa a escrever nos anos 1920:

Havia uma cabana escondida numa porção de árvores. Todos os que passavam por lá se benziam. É que corria a fama por toda a redondeza que ali morava um feiticeiro. De fato, o dono daquela cabana era um preto velho, muito feio, muito misterioso. (Del Pichia (sic), 1932, p. 7)[32]

 

            A representação do negro como “preto velho” era comum à época, como afirma a pesquisadora, e, embora não fosse exclusiva, conforme contestamos, certamente havia outras obras que disseminavam este estereótipo, mas Lobato, autor do libelo contra o racismo que é Negrinha, trazia para o interior de suas histórias exatamente a antítese dos paradigmas por meio de uma frutífera intertextualidade que se tornou invisível na media em que os textos dos outros autores foram caindo no esquecimento[33]. Assim é que o jargão da época, utilizado por Lobato para estabelecer a intertextualidade com os demais textos publicados no início do século XX que também utilizavam o mesmo jargão, chega hoje até nós como se fosse exclusivo de Lobato e característico de um suposto racismo também exclusivo de Lobato.


 

4. "Corpos animalizados"


Com relação à descrição das personagens presentes nas histórias destinadas a crianças do período selecionado, a pesquisadora nos leva à conclusão de que, contrariamente ao que acontecia com relação às personagens brancas, eram utilizados adjetivos depreciativos quando se referiam a personagens negras, sendo estas sempre animalizadas. Para exemplificar, mais uma vez ela lança mão de um excerto escrito por Lobato:

É interessante observar que Lobato fazia referência, em diversos textos, ao beiço de Tia Nastácia, animalizando-a. Assim, por exemplo, dizia Emília, em Reinações de Narizinho:

(...) eu cortava um pedaço desse beiço. (1931, p.36)

Na mesma obra, num diálogo entre as crianças, Emília retruca Pedrinho:

(...) melado com rapadura é uma coisa de lamber os beiços, disse Pedrinho – Beiço é de boi, protestou Emília. Gente tem lábios. (1931, p. 36)[34] 

 




Conforme se percebe no próprio exemplo pinçado, Pedrinho faz referência à expressão popular “de lamber os beiços”, uma locução adjetiva que caracteriza algo “delicioso” ou “extremamente saboroso” que é usada até os dias atuais. O termo “beiço”, portanto, mesmo fora do âmbito fictício não se aplica exclusivamente a pessoas de etnia negra.

Com relação aos termos depreciativos presentes na literatura infantil da época arrolada pela pesquisada, dos quais “beiço” e “negra” são exemplos presente nos livros de Lobato, tais termos compunham o jargão típico dos livros com os quais os livros de Lobato estabeleciam intertextualidade na medida em que Lobato usava o jargão com o qual o público para o qual ele escrevia já estava acostumado. Neste ponto, faz-se oportuno perguntar se Lobato teria utilizado esta estratégia – a repetição da caracterização depreciativa presente nos textos com os quais os seus dialogavam – se estivesse escrevendo histórias que seriam lidas por crianças negras e por seus pais. Teria ele se referido daquele modo ao público que, ao escolher como alvo, é de se supor, pretenderia agradar?

Mesmo que Lobato não militasse contra o racismo em sua obra infantil, seu tino comercial o impediria de cometer tal “suicídio literário”. Lobato tinha plena consciência de que não escrevia para um público negro e por isso se permitia usar como estratégia – por vezes acrescida de alta dose de ironia – de aproximação de seu público alvo os mesmos termos e caracterizações a que esse estava acostumado. Lobato se aproximava de seu público por meio do mesmo jargão que esse utilizava, estabelecendo, assim, similitude no nível da linguagem, e defendia, por meio do conteúdo – ações e reações das personagens – a igualdade entre as diferentes etnias, classes sociais, faixas etárias e culturas. Se Lobato escrevesse para um público composto também por negros, teria o cuidado de não usar expressões que poderiam magoá-lo, senão por uma questão de sensibilidade, de respeito e de luta contra o racismo, ao menos por uma questão de tino comercial, que nunca lhe faltou.

Além disso, se Lobato não tivesse descrito Tia Nastácia como representante da etnia negra, como saberíamos que ela é negra? Ela era cozinheira, mas poderia ser uma cozinheira branca – alguma imigrante italiana ou polonesa, por exemplo. Ela era praticamente mãe de criação de Narizinho – mesmo isso não a obrigaria a ser necessariamente negra, pois à época já havia no Brasil babás e preceptoras brancas. Ela viaja com D. Benta para a Europa e para Nova Iorque; ela é chamada a ensinar os grandes estadistas a construir a paz... A qual personagem negra caberia tal papel na sociedade brasileira do início do século XX? Ou seja, se Lobato não explicitasse que Tia Nastácia é negra, nós nunca saberíamos disso. Seu comportamento é sempre o de uma pessoa que se encontra no mesmo patamar social que D. Benta e, portanto, subentenderíamos que ela é branca – exatamente como subentendemos que D. Benta é branca, embora – como bem nota a pesquisadora – sua etnia não seja em momento algum explicitada.  O modo como Tia Nastácia se comporta e as características psicológicas a ela atribuídas – sabedoria, inclusive – não costumavam ser creditadas a personagens negras na literatura da época, conforme a própria pesquisadora ressalta.

Sem a descrição física – guiando-se o leitor apenas pelas ações, atitudes e características psicológicas de Tia Nastácia, realmente não haveria como saber que ela é negra. Mas por que, então, colocar uma personagem negra na história se comportando como branca de acordo com os padrões sociais característicos da época em que a história se passa também é uma pergunta adequada neste momento. Pois bem: era importante colocar uma personagem negra em cena, comportando-se como as personagens brancas e recebendo o papel e caracterização psicológica normalmente atribuídos a personagens brancas justamente para alçar o negro ao mesmo patamar ocupado pelo branco, ainda que apenas no plano literário, como uma forma de propor mudança de hábitos em relação ao negro. 

Com relação ao estereótipo do contador de história, repositório da cultura popular que a pesquisadora apresenta como “desvalorizada”, ao reproduzi-lo, Lobato recupera a figura do contador de história típico do Romantismo, que é por excelência o movimento literário que se dedicou a construir identidade para as nações ao apelar para os elementos culturais comuns a um conjunto de indivíduos que passavam, a partir de então, a constituir um povo. Como leitor ávido que era e conhecedor de Literatura, Lobato tinha perfeita noção da função social da literatura e do papel histórico que as obras do Romantismo, com o típico contador de histórias, desempenharam. Portanto, o  que Lobato faz ao resgatar uma estratégia típica do Romantismo é resgatar uma tradição literária que legitima a elevação dos negros à categoria de membros integrantes da sociedade porquanto partilham da cultura popular de que também são guardiões.

Quando se analisa uma obra literária, é preciso ter conhecimento – e trazê-lo para a análise – de teoria e história literária. Análises de textos literários amparadas apenas por teorias sociológicas, antropológicas e áreas afins acabam desprezando, por ignorância, a tradição literária e o sentido que determinadas personagens e determinados locus assumem dentro dessa tradição e recuperam ao serem invocados. Entenda-se tradição, aqui, no sentido de contexto encaixado no interior de uma corrente, precedido por outros contextos e práticas que lhe dão sentido e sucedido por outros contexto e práticas que ajudam a criar e aos quais dão sentido. Tais análises costumam ser, portanto, incompletas e, não raro, caem em todas as falácias a que a ignorância de elementos básicos de teoria e historiografia literária pode conduzir.

É importante, ainda, notar que a obra de Lobato rompe com a tradição literária com a qual dialoga. Quando Lobato insiste várias vezes em A menina do narizinho arrebitado, seu primeiro livro para crianças, e algumas vezes em outros livros que vão compor Reinações de Narizinho e a série O Sítio do Picapau Amarelo, que Tia Nastácia é negra ou preta, ele está justamente dialogando com uma tradição literária cujos principais exemplos – no que se refere ao lugar comum ao negro na literatura e sua caracterização como personagem literária – encontram-se em alguns dos excertos reproduzidos no próprio artigo aqui analisado. Tais excertos apresentam o negro recluso aos ambientes não frequentados pelos brancos, intrinsecamente mau e marcado pelo tom escuro de sua pele, que deveria ser embranquecido a todo custo, como bem destaca a pesquisadora.

            Especificamente sobre a caracterização de Tia Nastácia como negra, cumpre notar que, ao reproduzir os termos empregados para se referir a pessoas da etnia negra correntemente utilizados à época e empregados, inclusive, nos demais livros publicados no período – conforme a própria pesquisadora exemplifica –, as falas cabiam sempre a Emília. A única personagem que ofende Tia Nastácia é Emília, e ela é sempre repreendida por isso – no interior dos livros e fora deles, como bem exemplifica a carta de Maria Luiza[35], uma das leitoras mirins de Lobato que se correspondia com ele.

 

Ilma. Sra.

D. Benta Encerrabodes de Oliveira e família. Como vão todos aí?

Como vai a Emília balaqueira; Narizinho, a sonhadora; Pedrinho, o aventureiro; Visconde, o sábio embolorado; Tia Nastácia, a dona de todos os “credos” e “fazedora” dos mais gostosos bolinhos; Quindim, o inteligente paquiderme africano; Rabicó, o engole espadas (digo espadas de cascas de abóbora) e a senhora que me parece um tanto assustadiça?

       Diga a esses amiguinhos meus (menos a Emília) que quando eu puder irei ajudá-los a “aventurar”. (Aventurar, termo que emprego quando quero dizer – fazer aventuras)

       Diga ao meu amigo Monteiro Lobato, se ele for aí, que me desculpe a tardança da resposta a sua carta. Pois não tive coragem de pedir-lhe desculpas diretamente na carta que lhe escrevi.

 

Maria Luiza

 

3 palavras dedicadas a Emília em deutsch.

-          du - bist - dumm  -[36]

von

Maria Luiza

 

            Como se pode notar, a Tia Nastácia cabem apenas elogios, enquanto Emília é censurada. Ao menos Maria Luiza aprendera a quem elogiar e a quem censurar – talvez em casa, com pais esclarecidos, talvez também em alguns livros que lia, os de Lobato, que tão bem demonstravam – por meio, sobretudo, das ações das personagens – o que é certo e o que é errado.

            Convencionou-se tomar Emília como alter ego de Lobato, uma personagem por meio da qual Lobato exporia com liberdade ideias inconfessáveis. Se assim o fosse, Emília não seria repreendida continuamente pelas demais personagens, sobretudo por D. Benta, Narizinho e o Visconde de Sabugosa e, em algumas ocasiões, pela própria Tia Nastácia, que costuma ser a vítima preferida de seus comentários impertinentes. Se os comentários impertinentes de Emília fossem a expressão das ideias de Lobato, por que ele se daria ao trabalho de, por meio das demais personagens, repreendê-la? Uma pessoa em seu juízo perfeito professa determinas concepções por entendê-las como corretas e coerentes, ou seja, imbuídas de bom-senso. Se a voz de Emília fosse, de fato, a voz de Lobato, como ele teria condições de criticá-las por meio das vozes das demais personagens? Tais críticas demonstram o erro ou falta de lógica das falas de Emília. Se Lobato professasse as mesmas ideias de Emília, mesmo sendo capaz de tecer as críticas que coloca nas falas das demais personagens, ou Lobato teria sido diagnosticado como esquizofrênico ou como portador de transtorno dissociativo de identidade. Não há, porém, nenhuma referência a problema psiquiátrico relacionado a Lobato. Logo, Emília se encaixa mais como o “alter ego” de Ludwig, Kaspar e Wilhelm, os meninos da história de Hoffmann que, com seu caráter naïf – não no sentido de inocente, mas no sentido de destituído de educação, bons princípios e boas maneiras – caçoavam do menino negro que – este, sim – educado e guardador das boas maneiras, saía ao sol sob a proteção de uma sombrinha.

Emília simboliza a criança impetuosa, como o são todas as crianças que ainda não passaram pelo “processo civilizatório”. Impetuosa no sentido de mal-educada – que vai recebendo a educação de que precisa a cada demonstração de grosseria– e, ao mesmo tempo, no sentido de destituída de senso de padrão moral de comportamento. A licenciosidade de seu comportamento é autorizada por sua liberdade de criança em estado natural – ela já foi criada “grande”, lembremo-nos; ela não passou pelo processo de nascer bebê e ir crescendo e recebendo a educação que as experiências cotidianas e o convívio com os adultos e crianças já adiantadas no “processo civilizatório” proporcionam. Ou há no Sítio do Picapau Amarelo alguma outra personagem que desrespeite Tia Nastácia, desobedeça D. Benta, conteste o Visconde de Sabugosa, desafie Narizinho, despreze as ideias de Pedrinho e arranja intriga com quase todas as demais personagens?

            Quanto à frequente ausência de nome para as personagens de etnia negra a que a pesquisadora se refere – “invariavelmente, o nome dos personagens negros era substituído por vocábulos como: o negro, o negrinho, o preto, o pretinho, a negra, a negrinha, o preto velho, a negra velha”[37] –, não há como saber de que textos e autores ela trata, pois não apresentou nenhum exemplo. Sabemos, porém, que não pode estar se referindo à obra infantil de Lobato, em que até os animais recebiam nome e, por vezes, título de nobreza, como o Marquês de Rabicó – um porco – e o Príncipe Escamado – um peixe. O fato de a personagem do já referido conto “Negrinha” não ter recebido nome faz parte da estratégia de sensibilização adotada pelo autor para chamar a atenção do leitor para a denúncia ali apresentada: à desumanização a que as pessoas da etnia negra eram submetidas fora do universo fantástico – fictício, portanto – do Sítio do Picapau Amarelo.

            O que detectamos atualmente como linguagem racista nos textos de Lobato são as marcas desse diálogo, dessa intertextualidade que já não mais pode ser reconhecida porque, de todos aqueles livros destinados a crianças que circulavam no início do século XX, os únicos que continuam vivos são os de Lobato. Se os recolocarmos no contexto do qual foram retirados – ou seja, se lermos os livros infantis que estavam em circulação no início do século XX –, a linguagem empregada por Lobato se tornará lugar comum. E se a linguagem empregada por Lobato para caracterizar as personagens negras é a mesma que os demais autores do período empregavam, voltamos a destacar, o mesmo não se pode afirmar sobre a posição em que as personagens negras são colocadas por Lobato, determinadas por suas ações e atitudes, que configuram também sua caracterização psicológica – ou seja, o conteúdo da obra infantil de Lobato destoa do conteúdo comum à época e, justamente por isso, sobreviveu até os dias atuais.

            Não poderíamos encerrar este capítulo da história de acusações infundadas de que Lobato vem sendo vítima sem lembrar que a comparação com macaco, no texto de Lobato, serve para ressaltar as habilidades físicas das personagens; quem sobe em árvore com destreza – como Tia Nastácia no momento de desespero[38] – ou quem salta de uma pedra recoberta de limo para outra sem escorregar e cair no riacho – como Narizinho – são dignas de serem comparadas a macaco. Sim, o recurso estilístico utilizado por Lobato foi a comparação; em momento algum ele chamou Narizinho ou Tia Nastácia de “macaco”.


 

5. “Embranquecimento forçado das personagens negras"?!


No item em que a pesquisadora tece suas críticas à presença de personagens negras na literatura infantil apenas com o “irrelevante papel” de contadoras de histórias, pressupondo se tratar de mais um caso de estereotipia das personagens negras com o exclusivo objetivo de depreciá-las, ela reproduz a fala de Pérola da Manhã, a menina negra protagonista do conto homônimo que queria atravessar um rio cujas águas a tornariam branca.

 

Tamil disse-nos que os primeiros homens que foram criados viviam à margem de um grande rio, que fica para lá!, disse Pérola da Manhã, apontando para o norte. Eram todos pretos. Mas, alguns deles que sabiam nadar, atravessaram o rio para o outro lado. A água lavou-os e eles ficaram brancos. Desde então, os homens brancos estão sempre a estender os braços, convidando os homens pretos a também atravessarem o rio (...) eu também desejava atravessá-lo [a] nado, a fim de tornar-me branca. (Andrade, 1919, p. 32)

 

Publicado por Tales de Andrade em 1919[39] no volume dedicado ao folclore africano na coleção Biblioteca Infantil, esse conto precede A menina do narizinho arrebitado em poucos meses e, portanto, foi objeto de leitura do público com o qual Lobato começa a dialogar quando passa a escrever para crianças. 

            A despeito dos esforços de Tales de Andrade para registrar e disseminar parte dos elementos que constituem nossa cultura – como estrangeiros já haviam começado a fazer, a exemplo de Theodor Koch-Grünberg, que publicou em Berlim em 1916 Mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná, dentre os quais se destaca “Macunaíma”, apresentado mais tarde ao Brasil por Mário de Andrade –, a pesquisadora afirma que “O projeto de resgate da cultura africana foi construído a partir do olhar do narrador branco, cujos valores estavam impressos na narrativa.”[40]. A conclusão a que sua análise nos conduz é que aos negros teria sido imposto o desejo de se tornarem brancos e, por conseguinte, que todas as crianças negras desejavam se tornar brancas, pois, caso contrário, não seriam aceitas pelas crianças brancas: “Os negros eram destituídos de sua identidade étnico-cultural, reduzida a diferenciações físico-raciais. A possibilidade de tal convivência [entre crianças negras e branca] dava-se por meio do embranquecimento dos personagens negros, do despojamento de sua identidade racial.”[41].

            Partindo dessa análise aparentemente equivocada – há que se analisar mais profundamente o tema, que não pode receber um veredito como esse proferido pela pesquisadora em um único parágrafo de considerações, sem referência a sequer uma única pesquisa –, mais adiante, no item “Tornar-se branco”, a pesquisadora cita um excerto de Reinações de Narizinho, publicado em 1931 para demonstrar como Lobato teria imposto a seus leitores negros – embora inexistentes à época – a necessidade de se embranquecerem, renegando sua etnia e raízes:

 

Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta. — Que não seja boba e venha — disse Narizinho — eu dou uma explicação ao respeitável público... — Respeitável público, tenho a honra de apresentar (...) a Princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então, o encanto quebrar-se-á e ela virará uma linda princesa loura. (1931, p. 206)[42]

 

Tia Nastácia e Histórias de Tia Nastácia.


            Os três autores que acabamos de citar mereceram as seguintes considerações da pesquisadora:

Lobato aproxima sua narrativa da história de Pérola da Manhã, reproduzindo mitos presentes na cultura oral, também presentes em Macunaíma de Mário de Andrade, do mesmo período. Porém, se o autor modernista buscava retratar os mitos fundadores da brasilidade, numa perspectiva crítica, Tales de Andrade e Lobato apresentavam a herança racial africana como um fardo, a desqualificar os personagens. A literatura infantil espelhava a representação social das relações interraciais no Brasil, representação em que uma visão racista e etnocêntrica fazia-se presente, escapando à idealização pretendida pelos autores das obras infantis.[43]

 

            O que a pesquisadora deixa de levar em conta é que a idealização que ela credita a autores de obra infantil[44] não deixava espaço para personagens esféricas. Na literatura infantil tradicional – pré-transformação provocada por Lobato –, a bruxa (fada má) é totalmente má e, a princesa, totalmente boa. Os contos de fadas tradicionais, ambientados na parte ocidental da Europa medieval, vestiam de negro as fadas más e os cavaleiros que lutavam ao lado do mal ou cuja identidade se encontrava oculta. Isso não se deve, como certamente se imaginará, a um preconceito racial com raízes medievais. Deve-se, antes, ao valor simbólico atribuído pela psique humana às cores. A noite – escura, de cor negra e sombria, quando há lua cheia – é o momento do medo perante o desconhecido, bem como de se praticar o que se quer manter oculto. Tais noções se desenvolveram em tempos ancestrais, antes do uso de meios “artificiais” para iluminá-la. Seu oposto, o dia, com a chegada da luz, que a tudo ilumina e revela, causa sensações e correlações igualmente diametralmente opostas, sendo, portanto, identificado com a cor branca. A construção destes dois campos semânticos e sua oposição são tão universais que se encontram também na cultura ioruba:

 

As teorias da cor, tal como as teorias da música, são construções culturais. No pensamento ocidental, a cor é geralmente discutida como pigmento ou como luz que consiste em três propriedades variáveis: tonalidade, valor e intensidade. Tais construções moldam as formas como percebemos e compreendemos a cor. A cultura ioruba define e compreende a cor de uma forma diferente (...) Os iorubas distinguem três agrupamentos cromáticos: funfun, pupa e dundun/dudu. (...) cada grupo inclui uma gama de cores e matizes, bem como várias tonalidades e intensidades de cada cor. As associações evocativas com a temperatura e, por extensão, o temperamento, são os fatores primários que distinguem um grupo cromático de outro. O funfun, que inclui branco, prata, cinza pálido e cromo, evoca frio. O funfun também está associado à idade e à sabedoria. Pupa, evocando calor, inclui uma vasta gama do que os ocidentais podem rotular de vermelho, rosa, laranja e amarelo profundo. Fazendo a ponte e mediando os extremos de pupa (quente) e funfun (frio), dundun/dudu inclui cores escuras e geralmente frias: preto, azul, índigo, roxo e verde, bem como castanhos escuros, castanhos-avermelhados e cinzentos escuros.[45]

           

            Dessas noções, vêm a tradução de funfun como branco, claro e limpo e de dundun/dudu como preto, sujo e escuro, conforme se encontram no dicionário ioruba-português[46]. As possibilidades de tradução para o inglês de funfun[47] são white (branco, adjetivo), forfeitures (confisco), whit (?), whiten (branquear), whitener (branqueador), whiteness (brancura), whitening (branqueamento), whiter (mais branco), whitish (enbranquiçado), blanc (branco), holier (mais santo), pure (puro, adjetivo) e perfunctory (superficial) e, de dundun/dudu[48], black (preto, adjetivo), dark (esuro, adjetivo), darken (escurecer),  blacken (enegrecer), blacker (mais preto), blackie (?), blackish (enegrecido), blackly (negramente) e blackness (escuridão). Em resumo, em ioruba, funfun, frio e claridade pertencem a um mesmo campo semântico, enquanto dundun/dudu, calor e escuridão pertencem ao campo semântico oposto.

Por partilharem os ocidentais das mesmas noções de cor que os iorubas é que a fada má dos contos de fada é circunscrita ao campo semântico da cor negra. Por isso, a presença de Tia Nastácia, negra, no baile das princesas dos contos de fadas certamente despertaria atenção e causaria medo. Ela se tornaria o alvo de todos os olhares e motivo de pavor entre as princesas. Tia Nastácia, detentora do conhecimento tradicional popular – mesmo que desconhecesse a origem de seu saber – sabia disso e se encabulava diante da possibilidade, à qual não queria se expor, de ser tomada por uma fada má (bruxa).

Talvez Lobato soubesse a origem das vestes pretas das fadas más dos contos de fada que aterrorizavam as princesas com seus encantamentos, porém, mesmo que não soubesse, o fato é que ele estava escrevendo para crianças acostumas a ler histórias em que frequentemente – ou sempre, segundo a pesquisadora responsável pelo artigo aqui abordado – as personagens negras eram relacionadas a bruxarias e maldades. Por isso, era preciso avisar aquelas crianças, as leitoras para as quais ele estava escrevendo, que tinham em mãos outro tipo de contos de fada, nos quais as personagens negras são boas. Daí o emprego de expressões como “é negra, mas é boa”; a “boa negra”, “preta de alma branca” e “preta só por fora”. Tais expressões faziam parte do discurso conciliador à época, provavelmente para, como a pesquisadora mesma aponta[49], dissimular o racismo de quem as proferia, mas Lobato as ressignifica no interior de seus contos de fadas, que acabam por constituir uma versão moderna da literatura infantil, ao mesmo tempo em que abre a possibilidade de dialogar com os leitores acostumados a essas expressões nos textos que circulavam à época.

Que Tia Nastácia é uma personagem negra diferente daquelas personagens negras a que estavam acostumas, as crianças leitoras eram capazes de entender por meio de explicações que empregavam expressões como “preta só por fora”. Com as princesas dos contos de fadas, porém – personagens planas, para as quais os príncipes e as fadas boas eram totalmente bons e as madrastas e fadas más eram totalmente más, conforme acima explicado –, era preciso ser mais convincente. Como tolas que eram, na medida em que acreditavam na bondade absoluta e na maldade absoluta, bastava contar uma história fantasiosa daquelas às quais estavam acostumadas e até protagonizavam, afirmando que Tia Nastácia era uma princesa – por conseguinte, boa – e elas acreditariam. Tia Nastácia já tinha nome de princesa – a filha do czar da Rússia, procurada à época por detetives por todo o mundo. Podia muito bem ser uma princesa branca, como todas as demais que estariam presentes no baile, vitimada por um encantamento. Não haveria, então, nenhum motivo para pânico e Tia Nastácia poderia comparecer ao baile sem temer provocar espanto e pavor. Assim, “a idealização pretendida pelos autores das histórias infantis”[50] – que a pesquisadora cobra de Lobato – é usada por ele para desconstruir perante as crianças leitoras o imaginário ao qual elas tinham sido familiarizadas – como a própria pesquisadora aponta – de que as personagens negras são sempre más, e para desconstruir perante as princesas dos contos de fadas a relação direta entre o mal e a cor negra – nas vestes ou na pele –, uma vez que no interior daquela personagem negra havia uma princesa igualzinha a elas.


 

6. O suposto branqueamento forçado de crianças já brancas



Leitores do almanaque Tico-Tico (18 de março de 1925) 

e potenciais leitores da obra infantil de Lobato.


            Uma vez assentada e comprovada a presença do negro na literatura infantil publicada no Brasil desde seus primórdios e analisado o papel do negro na obra infantil de Lobato, passemos à etnia dos brasileirinhos e brasileirinhas que tinham livros à mão – tematizada pela pesquisadora no artigo aqui abordado no item “O embranquecimento do leitor infantil”[51].        Especificamente sobre este tópico, tudo que o artigo traz nos dois parágrafos que compõem este item é o que aparece nas duas últimas frases que encerram o artigo e uma frase citada em item anterior.

O leitor que os textos produziam era marcado pela identificação com a cultura e estética brancas, ao mesmo tempo que desqualificador da cultura e estética negra. Negro ou branco, os textos acabavam por embranquecer o leitor, ao reiteradamente representar a raça branca como superior.[52]

Na verdade, mais que embranquecer os personagens, a literatura infantil do período dirige-se e produz um leitor modelo identificado com os personagens e as referências culturais brancas, marcando, portanto, um embranquecimento do leitor.[53] 

            “Negro ou branco”, aqui, indica-nos que a pesquisadora parte do princípio de que o conjunto de crianças que sabiam ler e consumiam livros no Brasil entre 1900 e 1937 era composto por crianças brancas e negras – pressuposto a partir do qual todas as considerações apresentadas ao longo do artigo são tecidas e que já negamos em dois momentos anteriores. Diferentemente do que a pesquisadora afirma, os livros destinados ao público infantil do início do século XX não “acabavam por embranquecer o leitor negro” pelo simples fato de que não havia público leitor infantil negro no Brasil no início do século XX.

Inicialmente é preciso esclarecer que um livro até pode construir um público leitor para si, mas nenhum livro – sobretudo do início do século XX, quando o índice de analfabetismo era tão mais alto do que o atual e o acesso ao livro tão mais difícil – “produz leitores” no sentido de determinar quem terá acesso a livros, de modo geral. O acesso ao livro é determinado basicamente pela habilidade de leitura do indivíduo e seu poder aquisitivo ou acesso a bibliotecas públicas, caso elas existam – e só em segundo plano, por outros fatores.

            Dentre as diversas razões que conduzem à conclusão de que não havia publico leitor infantil negro no Brasil entre 1900 e 1937, período focalizado pela pesquisadora, destacam-se o fator econômico e os índices de analfabetismo.

O preço dos livros lhes franqueava acesso apenas às famílias mais abastadas – às quais os indivíduos que haviam estado até poucos anos antes sob o regime de exploração de sua força de trabalho não tinham acesso. Embora pudesse haver algumas exceções, exceção não constitui regra.

Além disso, por uma série de fatores que não nos cabe dissecar aqui, mesmo crianças brancas integrantes de famílias abastadas da área urbana, em sua maioria, não frequentavam escola. Dentre esses fatores, inclui-se o fato de que a Constituição de 1891 desobrigava a frequência à escola A maioria das crianças que aprendiam a ler no fim do século XIX e início do XX recebia educação informal em casa, aprendendo a ler, escrever e fazer contas com a própria mãe, algum outro parente ou preceptoras, dos quais acabavam recebendo também algumas noções básicas de conhecimentos gerais e artes. Por esse motivo, inclusive, os censos da época só recolhiam informação sobre alfabetização de indivíduos a partir de 15 anos – o índice de analfabetismo entre crianças nem aparecia nas estatísticas. Dentre os indivíduos a partir de 15 anos, o índice de analfabetismo era de 63,3% em 1900; 65,0% em 1920 e 56,1% em 1940[54]. Quanto mais novo o indivíduo, maior a probabilidade de que fosse analfabeto. Mesmo para as crianças brancas da classe baixa, o acesso à leitura, própria ou praticada por um adulto, constituía exceção.

Quanto aos pais das crianças negras no referido período, pode-se afirmar que dificilmente tiveram acesso à educação, pois cresceram durante o período que antecede a abolição do sistema escravagista ou nos primeiros anos posteriores a sua abolição.

Acrescente-se a tudo isso o fato de que a proporção de crianças negras era bem menor do que a de crianças brancas, conforme os índices dos censos de 1872, 1890 e 1940 nos levam a inferir – os censos de 1900 e 1920 não colheram informações sobre etnia. Enquanto a população branca era composta por 3.787.289 indivíduos em 1872; 6.302.198 em 1890 e 26.171.778, a população negra era composta, respectivamente, por 1,954.452; 2.097.426 e 6.035869[55].

Tendo isso em vista, o conteúdo dos livros infantis da época se baseava nos interesses da criança alfabetizada ou pertencente a um meio em que havia um adulto disposto a ler para ela. A maioria das crianças que preenchiam estes requisitos pertencia à classe alta, fato que exclui quase a totalidade das crianças negras – senão todas. Portanto, a escolha do tema a ser apresentado pelo livro infantil publicado no Brasil na época se dava como consequência das características do público leitor e não o contrário: o leitor não era levado a pensar como branco – tornar-se branco, mesmo que fosse negro – devido ao conteúdo dos livros. Tal afirmação só seria possível à base da completa escamoteação de qualquer noção de formação social e econômica da população brasileira da época, bem como qualquer noção de estética da recepção.

            Não apenas a criança leitora brasileira do início do século XX, mas também o adulto brasileiro leitor do início do século XX tinha necessariamente que ser branco e, mais que isso, pertencer à classe média ou alta urbana. Se formos considerar as exceções, então encontraremos o negro presente não apenas entre os leitores, mas também entre os escritores, fato ao qual a pesquisadora não se atém em momento algum.


 

            Conclusão


Conforme os fatos acima apresentados e analisados atestam, entre o retrato-falado do criminoso e sua real face vai uma longa distância.

Não se trata de negar o componente racista da literatura em circulação no Brasil – no passado e no presente, infantil e adulta.  O racismo estava e está presente na literatura tal como estava e está presente em elementos da sociedade. Trata-se de demonstrar que aqueles que atacam Lobato estão batendo no inimigo errado. Lobato foi justamente quem elevou as personagens negras ao mesmo patamar das brancas na literatura infantil brasileira, assim como elevou a mulher ao mesmo patamar ocupado pelos homens – quiçá, superior.

Além disso, trata-se de chamar a atenção para a necessidade de se considerar a análise feita por especialistas em literatura. Não se toma por completa, definitiva e única aceitável a análise morfológica de um vírus feita por um historiador ou sociólogo ou antropólogo, embora o vírus possa ser abordado a partir das mais diversas perspectivas, inclusive histórica, sociológica e antropológica. Quem analisa a morfologia do vírus é o biólogo, com formação complementar em bioquímica. Como, então, pode-se querer tomar por completas, definitivas, únicas aceitáveis, enfim, demonstrações cabais da verdade final e absoluta análises da obra de Lobato tecidas a partir de perspectivas que desconsideram por completo conceitos básicos de teoria e historiografia literária, feitas por leigos nas ciências da literatura? Análises parciais podem resultar no que têm resultado algumas análises contemporâneas da obra de Lobato: tentativas de matar o defensor e incapacidade de enxergar os verdadeiros detratores, por um lado e, por outro, panfletos vazios, quando não plenos de ódio, que, para aderir a uma causa justa – a defesa da igualdade de direitos e deveres entre os indivíduos de todas as etnias –, detratam cegamente quem tanto fez por esta mesma causa.



Recado para os navegantes:                                    

 

Aos que chegaram até aqui dispostos a concordar com o acima exposto, mas ansiosos por perguntar sobre O presidente negro, paciência. Analisar um texto de Lobato, que, por mais simples que possa parecer, nunca o é – conforme deve ter ficado claro – demanda tempo e pesquisa. Analisar um livro com conteúdo tão complexo quanto O Presidente Negro exige muito mais do pesquisador. Aguardem.


 



[1] O adjetivo “esquisito” à época significava “especial, lindo, maravilhoso, delicioso, acima do comum (em sentido positivo).

[2] João Felpudo Ou Historias Divertidas Com Desenhos Cômicos do Dr. Heinrich Hoffmann. Tradução de Guilherme de Almeida. São Paulo: melhoramentos.  5ª. Edição. Disponível em http://lineu.icb.usp.br/~cewinter/transfer/W_Busch/JFelpudo325.pdf Consultado em 15/01/2021.

[3] Cf. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Ática, 1985.

[4] GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. “Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica”. In Educação e Pesquisa, São Paulo, v.31, n.1, p. 77-89, jan./abr. 2005.

[5] Cf. COELHO, Nelly N. Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil brasileira. São Paulo: Quiron, 1981. Este livro contém mais de 1.300 páginas que apresentam 3.580 títulos de 784 autores diferentes publicados entre 1808 e 1990.

[6] GOUVÊA, 2005, p. 81.

[7] LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Ática, 1985.

[8] COELHO, Nelly N. Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil brasileira. São Paulo: Quiron, 1981.

[9] FRACCAROLI, Lenyra. Bibliografia de literatura infantil em língua portuguesa. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 1953.

[10] “Foram analisados dezessete títulos, selecionados a partir de sua circulação. Ou seja, na definição do corpus da pesquisa foi usado como critério o estudo de obras que tiveram mais de uma edição ao longo do período analisado e que foram referidas em estudos sobre a história da literatura infantil brasileira (Coelho, 1981; Lajolo; Zilberman, 1985; Fraccaroli, 1953).” (Gouvêia, 2005, p. 81)

[11] Cf. GOUVÊA, 2005, p. 81.

[12] Cf. GOUVÊA, 2005, p. 83.

[13] Cf. GOUVÊA, 2005, p. 83-84.

[14] HOFFMANN, Heinrich. “Die Geschichte von den schwarzen Buben“. In Der Struwwelpeter. Hamburg: Nelson Verlag, 2007, p. 7-9.

[15] Cf. GOUVÊA, 2005, p. 81.

[16] Cf. GOUVÊA, 2005, p. 83-84.

[17] Cf. SANTANA-DEZMANN, Vanete. “Beloved, Amistad e Negrinha… libelos contra o racismo”. In Observatório da Imprensa. Campinas, 05 de janeiro de 2021.

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/beloved-amistad-e-negrinha-libelos-contra-o-racismo/ Consultado em 15/01/2021.

[18] GOUVÊA, 2005, p. 82.

[19] GOUVÊIA, 2005, p. 84.

[20] GOUVÊIA, 2005, p. 84.

[21] Sobre a verossimilhança na Teoria Literária, conferir:

ARISTÓTELES. “Poética”. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 19-52.

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

PLATÃO. Diálogos III: a república. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006

[22] LOBATO, Monteiro. A reforma da natureza. Editora FTD. São Paulo, 2019, p. 10-11.

[23] GOUVÊA, 2005, p. 84.

[24] GOUVÊA, 2005, p. 85.

[25] GOUVÊA, 2005, p. 86.

[26] LOBATO, Monteiro. “O 22 da Marajó”. In A Novella Semanal, anno 1, n. 01, 02 mai. 1921. São Paulo : Soc. Editora Olegario Ribeiro, p. 1-3. https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5795  Acesso em 10.08.2020.

[27] GOUVÊA, 2005, p. 86.

[28] Cf. LOBATO, Monteiro. A menina do narizinho arrebitado. São Paulo: Revista do Brasil – Monteiro Lobato e Comp., 1920, p. 3. http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg43265/drg43265.pdf Acesso em 10.01.2021.

[29] Cf. LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. São Paulo: Brasiliense, 1997, 42ª. ed.  

[30] Cf. LOBATO, Monteiro. A reforma da natureza. São Paulo: FTD Editora, 2019.

[31] GOUVÊA, 2005, p. 87.

[32] GOUVÊA, 2005, p. 87.

[33] Cf. BIGNOTTO, Cilza. “Tios, princesas e sacis: a representação de negros nos livros infantis de Monteiro Lobato e de outros autores da Primeira República.” Palestra disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PirojDpxwI8

[34] GOUVÊA, 2005, p. 88.

[35] Esta carta se encontra no Arquivo IEB-USP, Fundo Raul de Andrada e Silva, Dossiê Monteiro Lobato, C1P2C9. Foi aqui reproduzida conforme se encontra em: SILVA, Raquel Afonso da. “O diálogo epistolar entre Monteiro Lobato e seus leitores infantis”.  In SIEBER, Cornelia; MILTON, John e SANTANA-DEZMANN, Vanete. Monteiro Lobato: homem e livros - I Jornada Monteiro Lobato da Universidade de São Paulo e Universidade Johannes Gutenberg. Lünen: Oxalá Editora, 2020, p. 51-60.

[36] Em alemão, du – bist - dumm significa “você é idiota”. O hífen separando uma palavra da outra indica que o recado deveria ser lido pausadamente, a fim de ser bem compreendido.

[37] GOUVÊA, 2005, p. 88.

[38] LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. 14. ed. Ilustrações de André Le Blanc. São Paulo: Brasiliense, 1962.

[39] ANDRADE, Tales de. “Pérola da manhã”. In Pérola da manhã. São Paulo: Melhoramentos, 1919.

[40] GOUVÊA, 2005, p. 86.

[41] GOUVÊA, 2005, p. 89.

[42] GOUVÊA, 2005, p. 89.

[43] GOUVÊA, 2005, p. 89.

[44] Cf. GOUVÊA, 2005, p. 89.

[45] Yorùbá Beadwork in Africa Author(s): Henry John Drewal Source: African Arts, Vol. 31, No. 1 (Winter, 1998), pp. 18-27+94 Published by: UCLA James S. Coleman African Studies Center Stable URL: http://www.jstor.org/stable/3337620 Acessado em 07/12/2020 (tradução nossa).

[49] “A fala da personagem é inequívoca. Apesar de preto, Alcaçuz tinha alma branca, o que lhe permitia ser aceito como companheiro pela criança branca. Fica clara a desqualificação das raízes raciais do personagem, sendo que a referência racial aparecia como um fardo compensado por seu caráter, que o ‘igualaria’ às demais crianças brancas. É interessante observar que a pretensão do autor parecia ser transmitir a idéia de convivência, integração interracial. Mas, ao fazê-lo, despojava o personagem de sua identidade étnica, marca vexatória compensada pelo caráter moral branco.”. GOUVÊA, 2005, p. 89.

[50] GOUVÊA, 2005, p. 89.

[51] GOUVÊA, 2005, p. 89.

[52] GOUVÊA, 2005, p. 90.

[53] GOUVÊA, 2005, p. 79.

[54] BRASIL. Ministério da Educação. Mapa do analfabetismo no Brasil. Secretaria Executiva. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), 2003.

[55] SENKEVICS, Adriano. “A cor e a raça nos censos demográficos nacionais”. Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais, Universidade Federal de Juiz de Fora. Disponível em:  https://www.ufjf.br/ladem/2015/11/20/a-cor-e-a-raca-nos-censos-demograficos-nacionais-por-adriano-senkevics/ . Acessado em 15.01.2021.

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