Dra. Vanete Santana-Dezmann
Em
sua segunda viagem ao futuro Brasil, Hans Staden, o aventureiro alemão, foi
contratado pelos portugueses como artilheiro em seu forte, na Ilha de Santo
Amaro. Segundo afirma, ninguém se arriscava a trabalhar lá, pois todos temiam
os constantes ataques dos Tupinambá (cf. Staden, 1941, p. 61-66), donde
presumimos que ele fosse muito corajoso, pois, embora contasse com o auxílio de
apenas um Carijó e dois portugueses, passaram-se meses até que fosse capturado
(no fim de 1553 ou início de 1554). Debalde os portugueses e seus aliados, os
Tupiniquim, tentaram resgatá-lo. Fora levado para Ubatuba, litoral de S. Paulo.
De
acordo com sua própria narração, Staden se passara por francês para não ser
tratado como inimigo pelos Tupinambá, que, lembremo-nos, eram aliados dos
franceses. A chegada de uma expedição de resgate, junto à qual se achavam
alguns de seus companheiros de naufrágio, contribuiu para a manutenção da farsa
– como um deles era francês, Staden inventou que eram irmãos e, afirmando que
os portugueses do navio o mantinham como prisioneiro, disse aos Tupinambá que
pediria a seu irmão que fugisse, conseguisse um bom resgate na França e
retornasse para buscá-lo. Sob essa condição, os Tupinambá teriam concordado em
mantê-lo vivo.
Staden
foi poupado, portanto, não graças à sua coragem e à intervenção direta do Deus
dos luteranos, como frisa em seu livro Duas viagens ao Brasil, cuja primeira
edição, publicada na Alemanha, data de 1557, mas, antes, graças à sua
capacidade de mentir e à sua covardia, pois, ainda segundo sua narração,
chorava diante de qualquer ameaça. Seu falso irmão jamais retornou e, com suas
demonstrações de covardia, Staden teve seu valor depreciado pelos índios, que
provavelmente já não se dispunham a se alimentar com uma carne, segundo suas
crenças, impregnada com características morais indesejáveis.
A
despeito disso, não faltaram enaltecimentos às supostas religiosidade e
ousadia, atribuída mais à coragem – que não tinha – que à ignorância e natural
desejo de se salvar a qualquer custo. Entre seus admiradores, encontra-se Robert
Avé-Lallemant, que nasceu em Lübeck em 25/07/1812 e viveu no Brasil entre 1836
e 1855. Em 1871, na Alemanha, publicou Hans Staden entre os selvagens brasileiros
ou o poder da fé e da oração (tradução nossa), uma reescritura do livro de
Staden.
A
época
No
mesmo período, na Alemanha, após a desintegração do Sacro Império Romano de Nação
Germânica (1806) e as guerras civis entre territórios germânicos inspiradas
pela idéias liberais vindas da França, a liberdade política fora restringida.
Após a
restituição da liberdade de expressão (1850) e o fortalecimento da burguesia,
quando a situação parecia se acomodar com a Prússia no comando dos territórios
germânicos e quando Avé-Lallemant já havia retornado a seu país, todos são
arrastados a uma nova guerra – contra a França.
Como
a Guerra Franco-Prussiana se estendeu entre 1870 e 1871, seu fim e a unificação
alemã coincidem com o ano da publicação do referido livro de Avé-Lallemant.
Nessa sua adaptação, o livro de Staden foi condensado em seis capítulos nos
quais o protagonista é convertido em mártir do cristianismo ao ser comparado às
“primeiras testemunhas de sangue” do
cristianismo (cf. Avé-Lalleman, 1971, p. 102). No interior do livro, porém, ao
narrar a chegada de Staden à tribo dos Tupinambá, comparou-o ao próprio Jesus.
Naquele momento, Staden se encontraria profundamente desesperado, pois todos
teriam se aproximado para vê-lo e o obrigaram a gritar “Aqui estou chegando
para ser comido por vós” (Avé-Lalleman, 1971, p. 56). Após tudo o que sofrera,
bastante ferido e assustado, os índios que o capturaram lhe disseram que o
tinham presenteado ao tio para que este o comesse, se quisesse. Nesta situação,
Staden teria dito a si mesmo: “Agora estão fazendo os preparativos para
matar-te” (Avé-Lalleman, 1971, p. 57). Seu consolo teria sido a lembrança do
sofrimento de Jesus: “lembrei-me do sofrimento do nosso redentor Jesus Cristo,
como ele sofreu com os judeus infames” (Avé-Lalleman,1971, p. 58), ou seja,
Staden é comparado a Jesus, enquanto aos índios restara a posição dos “infames”
(nas palavras de Avé-Lallemant) judeus. Em meio à narração desses fatos, talvez
para dar maior credibilidade a suas palavras, Avé-Lallemant afirma que o que
aqueles índios fizeram foi uma demonstração de seus costumes selvagens,
conservados até a época em que ele próprio estivera no Brasil: “eles
apresentaram totalmente o quadro ou a imagem canibalesca de sua animalidade, na
qual até hoje em dia os botocudos e outras tribos brasileiras vivem, matando
com socos os seus inimigos, assando-os e deglutindo-os mal-passados.” (Avé-Lalleman,
1971, p. 56).
Também o título escolhido por Avé-Lallemant para o capítulo
no qual essa seqüência de ações é narrada alude à sensação de tristeza e
desespero que ele procura imprimir
Apresentar um Staden desesperado e desgraçado era
importante porque, quanto pior fosse sua situação, maior o crédito de seu Deus
pelo socorro que lhe prestasse, demonstrando, assim, o poder de suas orações.
Por isso Avé-Lallemant ressalta os perigos aos quais Staden esteve exposto,
mesmo que, para tanto, precisasse criar ou reafirmar narrações inverossímeis
como a que se dá quando, logo após ter sido capturado, Staden é objeto de uma
disputa entre os índios de diferentes tribos. Diante do impasse, um dos índios
teria proposto que o dividissem ali mesmo, para que cada qual tivesse sua parte
– mesmo à época de Avé-Lallemant, já se sabia que o ritual antropofágico durava
vários meses e que deveria chegar ao fim em época específica, sendo, pois,
absurda a idéia de que se pudesse retalhar Staden logo após sua captura. Porém,
após esse fato, o narrador pôde, então, apresentar Staden como um homem
realmente desgraçado, ao qual apenas a intervenção divina poderia salvar:
Assim Staden era um homem
perdido. Somente a intervenção imediata de Deus poderia salvá-lo das garras dos
canibais, os quais estavam exaltados, especialmente contra os portugueses, que
eram intrusos, ao passo que os piratas franceses, sendo inimigos dos
portugueses, lidavam com eles mais ou menos bem, comercializavam e até viviam
com eles, mas apenas para instigá-los contra os portugueses. (Avé-Lalleman,
1971, p. 51).
A insistência em esclarecer que os Tupinambá eram inimigos
dos portugueses e que os franceses os incitavam contra os exploradores legais
de suas terras também serve para intensificar o perigo que Staden corria, pois,
desde o princípio, os índios o haviam tomado por português.
Em momento posterior, quando Staden
já se encontrava acomodado para dormir, Avé-Lallemant emprega o discurso
direto, mais apelativo, para que a própria vítima expressasse seu desespero:
Como eu estava com um medo e
angústia tão grande, eu pensei numa das coisas que nunca tinha pensado antes.
Ou seja, pensei no vale de lágrimas em que nós aqui vivemos E comecei, com
lágrimas nos olhos, a cantar o Salmo “Da profunda miséria, clamo a ti etc”.
Aí os selvagens disseram “olhem
como ele está se lamentando”. (Avé-Lalleman,
1971, p. 53-54).
Nesse episódio, a fé de Staden é mais uma vez demonstrada e
ressaltada no apelo a seu Deus por meio de uma oração.
A transformação de Staden em testemunha de sangue do cristianismo e na
própria imagem de Cristo se deve ao contexto em que a adaptação de
Avé-Lallemant foi publicada e ao objetivo a que parece se destinar.
À
Europa Renascentista – e à Reformista também – tinha sido útil a construção de
um imaginário sobre o Brasil, ou, antes, de um Brasil imaginário, “demonizado”
que resultasse na construção de uma nova identidade para si própria. Ao criar o
conceito do selvagem antropófago, transportado para as terras onde o Brasil se
constituiria, o europeu pôde, por oposição, construir para si a imagem de bom e
civilizado, a despeito das barbáries praticadas pelo Império Romano, das
Cruzadas e da Inquisição – só para citar alguns exemplos. Processou-se, assim,
uma construção, como qualquer outra, performática, na medida em que as
identidades são criadas a partir de representações.
No fim
do século XVIII e início do XIX, época
Que passado glorioso poderia despertar um
saudosismo histórico capaz de levar diferentes nações a se conglomerar em torno
de uma única pátria senão uma representação performática, uma construção
artificial de sentidos? Só por meio de um imaginário coletivo seria possível
criar um sentimento de comunidade entre povos tão diversos (prussianos, saxões,
bávaros etc.) que serviram de base para a construção da nação alemã. Aliás, não
é sem motivo que a unificação alemã se inicia pela unificação (sempre relativa)
lingüística, na época de Martinho Lutero. Foi o espírito da linguagem que
primeiro tornou possível a congruência de povos tão diferentes em torno de
objetivos comuns que levaram à formação do II
Reich. Esse espírito da linguagem nasceu com a Bíblia de Lutero, que trouxe
simultaneamente uma contribuição incomensurável para as transformações que
levariam à formação da Alemanha bem como para a transformação que abalaria o
mundo ocidental – a Reforma Protestante. Reeditando o livro de Staden,
reescrito segundo os interesses de sua época, Avé-Lallemant contribui para a
formação dessa comunidade imaginária germânica composta por um mártir –
luterano, obviamente: Hans Staden.
Tanto é verdade que Deus
existe quanto é verdade que Hans Staden foi salvo pela intervenção direta de
Deus das mãos dos horrorosos selvagens brasileiros cujos descendentes eu também
conheci em sua horrenda brutalidade.
Assim, uma publicação desse
livro de Hans Staden poderia parecer supérflua, mas não é nada supérflua. Por
um lado a minha versão comprova o amor escrupuloso que esse mártir de Hessen
teve pela verdade quando nós o seguimos passo a passo por sua estadia horrível
no Brasil e então colhemos o fruto delicioso da história de Staden, ou seja, o
fruto de que o apelo da oração a Deus realmente ajuda nas dificuldades quando
toda ajuda humana está distante e quando só a vontade imediata de Deus pode
salvar. (Avé-Lalleman, 1971, p. IX).
Em 1926, Monteiro Lobato publica no Brasil o
que classificou como ordenação literária do livro de Staden. Comparando-a à
adaptação feita por Avé-Lallemant, percebemos que, nesta, as referências ao
Deus europeu são intensificadas, enquanto que, naquela, tais referências são
silenciadas. É bem verdade que Lobato considera o livro de Staden importante
para a história do Brasil, como o crítico Helmut Andrä fez questão de frisar:
Não há documento mais precioso relativo à terra
brasileira em seus primórdios do que as memórias de Hans Staden (...) Obra de
valor inestimável que deveria andar no conhecimento de todos brasileiros (...)
uma obra que até nas escolas devia entrar, pois nenhuma daria melhor aos nossos
meninos a sensação do Brasil menino. (Lobato, apud Andrä, 1960, p. 292).
Certamente
os motivos apresentados acima, bem como o tino comercial de Lobato, aliado a um
projeto de construção de brasilidade, determinaram a escolha de Duas viagens ao Brasil como obra de
estréia de sua Companhia Editora Nacional. Mas não queria que o livro chegasse
às mãos da criança brasileira sem antes passar pelas suas. Assim, considerando
insuficiente a simples adaptação literária, que não lhe conferia muita
liberdade de ação, Lobato parte para a assumida adaptação, escrevendo Aventuras de Hans Staden, em que
constatamos apenas duas referências ao Deus ocidental, e não foi para enaltecer
qualquer prática religiosa, mas, antes, para destacar as atrocidades cometidas
pelos que se diziam cristãos (cf. Lobato, 1998, p. 30).
Ao
contrário do trabalho por ele efetuado na ordenação literária, a reescritura da
história de Staden para o público infantil brasileiro revela alterações
indeléveis e constantes. Apenas para citarmos dois exemplos, quanto à
identidade heróica de Staden, Lobato comenta: “a história é escrita por eles.
Um pirata quando escreve a sua vida está claro que se embeleza de maneira a dar
a impressão de que é um magnânimo herói.” E ironiza: “À entrada de uma certa
cidade erguia-se um grupo de mármore, que representava um homem vencendo na
luta ao leão. Passa um leão, contempla aquilo e diz: Muito diferente seria essa
estátua se os leões fossem escultores!” (Lobato, 1998, p. 27).
Quanto
às torturas que Staden teria sofrido, Lobato ressalta:
não há termo de comparação entre o modo pelo qual os
índios tratavam os prisioneiros e o que era de uso na Europa. Lá a
‘civilização’ recorria a todos os suplícios, inventava as mais horrendas
torturas. Assavam os pés da vítima, arrancavam-lhes as unhas, esmagavam-lhe os
ossos, davam-lhe a beber chumbo derretido, queimavam-na viva
Ou
seja, a partir de um mesmo livro, Duas
viagens ao Brasil, de Hans Staden, foi possível tanto criar uma adaptação
em que o poder da fé e da oração são exaltados e o protagonista é convertido em
mártir do cristianismo reformado, quanto outra, em que o nome de Deus é citado
apenas para lembrar as atrocidades cometidas pelos “selvagens civilizados”,
dos quais o protagonista do livro seria representante.
Referências
ANDRÄ, Helmut. Hans
Staden e sua época. In: Revista de
História. Vol. XX, Ano XI, abril-junho. Separata número 42. São Paulo,
1960, p. 289-307.
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Hans Staden von Homberg bei den brasilienischen Wilden oder die Macht des
Glaubens und Betens. Hamburg:
Wichernhaus, 1871.
DAVI.
Livro dos Salmos. In: Bíblia Sagrada
(Tradução: João Ferreira de Almeida). Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1987, p. 605-684.
LOBATO, Monteiro. Aventuras de Hans Staden. São Paulo:
Brasiliense, 1998, 34ª. ed.
SANTANA, Vanete Dutra
(2007): Lobato e os carrascos
civilizados – construção de brasilidade via reescritura de Warhaftige Historia,
de Hans Staden. 2007. Tese (Doutorado
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil (atualização do
alemão e tradução para o português de Karl Fouquet, a partir da edição de
Andreas Kolbe, de 1547). São Paulo: Sociedade Hans Staden, 1941.
__________ (1926) Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil
(Ordenação literária: Monteiro Lobato). Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1926,
2ª ed.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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