3.1.21

Hans Staden em três momentos - Se os leões fossem escultores...

 




Dra. Vanete Santana-Dezmann 

 ENELIN

Em sua segunda viagem ao futuro Brasil, Hans Staden, o aventureiro alemão, foi contratado pelos portugueses como artilheiro em seu forte, na Ilha de Santo Amaro. Segundo afirma, ninguém se arriscava a trabalhar lá, pois todos temiam os constantes ataques dos Tupinambá (cf. Staden, 1941, p. 61-66), donde presumimos que ele fosse muito corajoso, pois, embora contasse com o auxílio de apenas um Carijó e dois portugueses, passaram-se meses até que fosse capturado (no fim de 1553 ou início de 1554). Debalde os portugueses e seus aliados, os Tupiniquim, tentaram resgatá-lo. Fora levado para Ubatuba, litoral de S. Paulo.

De acordo com sua própria narração, Staden se passara por francês para não ser tratado como inimigo pelos Tupinambá, que, lembremo-nos, eram aliados dos franceses. A chegada de uma expedição de resgate, junto à qual se achavam alguns de seus companheiros de naufrágio, contribuiu para a manutenção da farsa – como um deles era francês, Staden inventou que eram irmãos e, afirmando que os portugueses do navio o mantinham como prisioneiro, disse aos Tupinambá que pediria a seu irmão que fugisse, conseguisse um bom resgate na França e retornasse para buscá-lo. Sob essa condição, os Tupinambá teriam concordado em mantê-lo vivo.

Staden foi poupado, portanto, não graças à sua coragem e à intervenção direta do Deus dos luteranos, como frisa em seu livro Duas viagens ao Brasil, cuja primeira edição, publicada na Alemanha, data de 1557, mas, antes, graças à sua capacidade de mentir e à sua covardia, pois, ainda segundo sua narração, chorava diante de qualquer ameaça. Seu falso irmão jamais retornou e, com suas demonstrações de covardia, Staden teve seu valor depreciado pelos índios, que provavelmente já não se dispunham a se alimentar com uma carne, segundo suas crenças, impregnada com características morais indesejáveis.

A despeito disso, não faltaram enaltecimentos às supostas religiosidade e ousadia, atribuída mais à coragem – que não tinha – que à ignorância e natural desejo de se salvar a qualquer custo. Entre seus admiradores, encontra-se Robert Avé-Lallemant, que nasceu em Lübeck em 25/07/1812 e viveu no Brasil entre 1836 e 1855. Em 1871, na Alemanha, publicou Hans Staden entre os selvagens brasileiros ou o poder da fé e da oração (tradução nossa), uma reescritura do livro de Staden.

            A época em que Avé-Lallemant viveu no Brasil foi uma das mais efervescentes, pois foi justamente o período entre a independência política e a adoção do regime republicano. Quase tudo ainda estava por ser estabelecido – a língua, o cânon literário nacional, as fronteiras geográficas atuais, o regime político.

No mesmo período, na Alemanha, após a desintegração do Sacro Império Romano de Nação Germânica (1806) e as guerras civis entre territórios germânicos inspiradas pela idéias liberais vindas da França, a liberdade política fora restringida.

Após a restituição da liberdade de expressão (1850) e o fortalecimento da burguesia, quando a situação parecia se acomodar com a Prússia no comando dos territórios germânicos e quando Avé-Lallemant já havia retornado a seu país, todos são arrastados a uma nova guerra – contra a França.

Como a Guerra Franco-Prussiana se estendeu entre 1870 e 1871, seu fim e a unificação alemã coincidem com o ano da publicação do referido livro de Avé-Lallemant. Nessa sua adaptação, o livro de Staden foi condensado em seis capítulos nos quais o protagonista é convertido em mártir do cristianismo ao ser comparado às “primeiras testemunhas de sangue” do cristianismo (cf. Avé-Lalleman, 1971, p. 102). No interior do livro, porém, ao narrar a chegada de Staden à tribo dos Tupinambá, comparou-o ao próprio Jesus. Naquele momento, Staden se encontraria profundamente desesperado, pois todos teriam se aproximado para vê-lo e o obrigaram a gritar “Aqui estou chegando para ser comido por vós” (Avé-Lalleman, 1971, p. 56). Após tudo o que sofrera, bastante ferido e assustado, os índios que o capturaram lhe disseram que o tinham presenteado ao tio para que este o comesse, se quisesse. Nesta situação, Staden teria dito a si mesmo: “Agora estão fazendo os preparativos para matar-te” (Avé-Lalleman, 1971, p. 57). Seu consolo teria sido a lembrança do sofrimento de Jesus: “lembrei-me do sofrimento do nosso redentor Jesus Cristo, como ele sofreu com os judeus infames” (Avé-Lalleman,1971, p. 58), ou seja, Staden é comparado a Jesus, enquanto aos índios restara a posição dos “infames” (nas palavras de Avé-Lallemant) judeus. Em meio à narração desses fatos, talvez para dar maior credibilidade a suas palavras, Avé-Lallemant afirma que o que aqueles índios fizeram foi uma demonstração de seus costumes selvagens, conservados até a época em que ele próprio estivera no Brasil: “eles apresentaram totalmente o quadro ou a imagem canibalesca de sua animalidade, na qual até hoje em dia os botocudos e outras tribos brasileiras vivem, matando com socos os seus inimigos, assando-os e deglutindo-os mal-passados.” (Avé-Lalleman, 1971, p. 56).

Também o título escolhido por Avé-Lallemant para o capítulo no qual essa seqüência de ações é narrada alude à sensação de tristeza e desespero que ele procura imprimir em seu Staden: “Da profunda miséria, clamo a ti”, primeiro versículo do Salmo 130, conhecido como “De profundis”, reproduz a lamentação de Davi pela morte de seu filho Absalão (cf. DAVI, 1987, p. 676).

Apresentar um Staden desesperado e desgraçado era importante porque, quanto pior fosse sua situação, maior o crédito de seu Deus pelo socorro que lhe prestasse, demonstrando, assim, o poder de suas orações. Por isso Avé-Lallemant ressalta os perigos aos quais Staden esteve exposto, mesmo que, para tanto, precisasse criar ou reafirmar narrações inverossímeis como a que se dá quando, logo após ter sido capturado, Staden é objeto de uma disputa entre os índios de diferentes tribos. Diante do impasse, um dos índios teria proposto que o dividissem ali mesmo, para que cada qual tivesse sua parte – mesmo à época de Avé-Lallemant, já se sabia que o ritual antropofágico durava vários meses e que deveria chegar ao fim em época específica, sendo, pois, absurda a idéia de que se pudesse retalhar Staden logo após sua captura. Porém, após esse fato, o narrador pôde, então, apresentar Staden como um homem realmente desgraçado, ao qual apenas a intervenção divina poderia salvar:

 

Assim Staden era um homem perdido. Somente a intervenção imediata de Deus poderia salvá-lo das garras dos canibais, os quais estavam exaltados, especialmente contra os portugueses, que eram intrusos, ao passo que os piratas franceses, sendo inimigos dos portugueses, lidavam com eles mais ou menos bem, comercializavam e até viviam com eles, mas apenas para instigá-los contra os portugueses. (Avé-Lalleman, 1971, p. 51).

 

A insistência em esclarecer que os Tupinambá eram inimigos dos portugueses e que os franceses os incitavam contra os exploradores legais de suas terras também serve para intensificar o perigo que Staden corria, pois, desde o princípio, os índios o haviam tomado por português.

            Em momento posterior, quando Staden já se encontrava acomodado para dormir, Avé-Lallemant emprega o discurso direto, mais apelativo, para que a própria vítima expressasse seu desespero:

 

Como eu estava com um medo e angústia tão grande, eu pensei numa das coisas que nunca tinha pensado antes. Ou seja, pensei no vale de lágrimas em que nós aqui vivemos E comecei, com lágrimas nos olhos, a cantar o Salmo “Da profunda miséria, clamo a ti etc”.

Aí os selvagens disseram “olhem como ele está se lamentando”. (Avé-Lalleman, 1971, p. 53-54).

 

Nesse episódio, a fé de Staden é mais uma vez demonstrada e ressaltada no apelo a seu Deus por meio de uma oração.

            A transformação de Staden em testemunha de sangue do cristianismo e na própria imagem de Cristo se deve ao contexto em que a adaptação de Avé-Lallemant foi publicada e ao objetivo a que parece se destinar.

À Europa Renascentista – e à Reformista também – tinha sido útil a construção de um imaginário sobre o Brasil, ou, antes, de um Brasil imaginário, “demonizado” que resultasse na construção de uma nova identidade para si própria. Ao criar o conceito do selvagem antropófago, transportado para as terras onde o Brasil se constituiria, o europeu pôde, por oposição, construir para si a imagem de bom e civilizado, a despeito das barbáries praticadas pelo Império Romano, das Cruzadas e da Inquisição – só para citar alguns exemplos. Processou-se, assim, uma construção, como qualquer outra, performática, na medida em que as identidades são criadas a partir de representações.

No fim do século XVIII e início do XIX, época em que Goethe e demais políticos e homens de letras de sua época se esforçam para construir a germanidade, interessava à Alemanha unificada – o II Reich – colocar em relevo a fé protestante, uma vez que tinha sido o berço do protestantismo. Qual a maior contribuição da Alemanha para o mundo ocidental senão a Reforma Protestante? A esta Alemanha, recém-constituída, interessava propalar a importância da fé cristã reformada. Para tanto, era preciso lembrar os próprios alemães de sua importância no plano mundial – na Europa vigora o nacionalismo romântico, ou seja, um nacionalismo que constrói a superioridade da nação sobre as reminiscências de um passado heróico resultante do imaginário coletivo. Justamente nesse tipo de nacionalismo teria se centrado a defesa da superioridade racial das nações européias e a elevação de sua auto-estima com base em mitos que as apresentavam como as mais avançadas de todo o mundo.

Que passado glorioso poderia despertar um saudosismo histórico capaz de levar diferentes nações a se conglomerar em torno de uma única pátria senão uma representação performática, uma construção artificial de sentidos? Só por meio de um imaginário coletivo seria possível criar um sentimento de comunidade entre povos tão diversos (prussianos, saxões, bávaros etc.) que serviram de base para a construção da nação alemã. Aliás, não é sem motivo que a unificação alemã se inicia pela unificação (sempre relativa) lingüística, na época de Martinho Lutero. Foi o espírito da linguagem que primeiro tornou possível a congruência de povos tão diferentes em torno de objetivos comuns que levaram à formação do II Reich. Esse espírito da linguagem nasceu com a Bíblia de Lutero, que trouxe simultaneamente uma contribuição incomensurável para as transformações que levariam à formação da Alemanha bem como para a transformação que abalaria o mundo ocidental – a Reforma Protestante. Reeditando o livro de Staden, reescrito segundo os interesses de sua época, Avé-Lallemant contribui para a formação dessa comunidade imaginária germânica composta por um mártir – luterano, obviamente: Hans Staden.

 

Tanto é verdade que Deus existe quanto é verdade que Hans Staden foi salvo pela intervenção direta de Deus das mãos dos horrorosos selvagens brasileiros cujos descendentes eu também conheci em sua horrenda brutalidade.

Assim, uma publicação desse livro de Hans Staden poderia parecer supérflua, mas não é nada supérflua. Por um lado a minha versão comprova o amor escrupuloso que esse mártir de Hessen teve pela verdade quando nós o seguimos passo a passo por sua estadia horrível no Brasil e então colhemos o fruto delicioso da história de Staden, ou seja, o fruto de que o apelo da oração a Deus realmente ajuda nas dificuldades quando toda ajuda humana está distante e quando só a vontade imediata de Deus pode salvar. (Avé-Lalleman, 1971, p. IX).

 

Em 1926, Monteiro Lobato publica no Brasil o que classificou como ordenação literária do livro de Staden. Comparando-a à adaptação feita por Avé-Lallemant, percebemos que, nesta, as referências ao Deus europeu são intensificadas, enquanto que, naquela, tais referências são silenciadas. É bem verdade que Lobato considera o livro de Staden importante para a história do Brasil, como o crítico Helmut Andrä fez questão de frisar:

 

Não há documento mais precioso relativo à terra brasileira em seus primórdios do que as memórias de Hans Staden (...) Obra de valor inestimável que deveria andar no conhecimento de todos brasileiros (...) uma obra que até nas escolas devia entrar, pois nenhuma daria melhor aos nossos meninos a sensação do Brasil menino. (Lobato, apud Andrä, 1960, p. 292).

 

Certamente os motivos apresentados acima, bem como o tino comercial de Lobato, aliado a um projeto de construção de brasilidade, determinaram a escolha de Duas viagens ao Brasil como obra de estréia de sua Companhia Editora Nacional. Mas não queria que o livro chegasse às mãos da criança brasileira sem antes passar pelas suas. Assim, considerando insuficiente a simples adaptação literária, que não lhe conferia muita liberdade de ação, Lobato parte para a assumida adaptação, escrevendo Aventuras de Hans Staden, em que constatamos apenas duas referências ao Deus ocidental, e não foi para enaltecer qualquer prática religiosa, mas, antes, para destacar as atrocidades cometidas pelos que se diziam cristãos (cf. Lobato, 1998, p. 30).

Ao contrário do trabalho por ele efetuado na ordenação literária, a reescritura da história de Staden para o público infantil brasileiro revela alterações indeléveis e constantes. Apenas para citarmos dois exemplos, quanto à identidade heróica de Staden, Lobato comenta: “a história é escrita por eles. Um pirata quando escreve a sua vida está claro que se embeleza de maneira a dar a impressão de que é um magnânimo herói.” E ironiza: “À entrada de uma certa cidade erguia-se um grupo de mármore, que representava um homem vencendo na luta ao leão. Passa um leão, contempla aquilo e diz: Muito diferente seria essa estátua se os leões fossem escultores!” (Lobato, 1998, p. 27).

Quanto às torturas que Staden teria sofrido, Lobato ressalta:

 

não há termo de comparação entre o modo pelo qual os índios tratavam os prisioneiros e o que era de uso na Europa. Lá a ‘civilização’ recorria a todos os suplícios, inventava as mais horrendas torturas. Assavam os pés da vítima, arrancavam-lhes as unhas, esmagavam-lhe os ossos, davam-lhe a beber chumbo derretido, queimavam-na viva em fogueira. Não há monstruosidade que em nome da lei de Deus os carrascos civilizados, em nome e por ordem dos papas e dos reis, não tenham praticado. Mesmo aqui na América o que sobretudo os espanhóis fizeram é de arrepiar as carnes. (Lobato, 1998, p. 30).

 

Ou seja, a partir de um mesmo livro, Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden, foi possível tanto criar uma adaptação em que o poder da fé e da oração são exaltados e o protagonista é convertido em mártir do cristianismo reformado, quanto outra, em que o nome de Deus é citado apenas para  lembrar as atrocidades cometidas pelos “selvagens civilizados”, dos quais o protagonista do livro seria representante.

 

Referências

 

ANDRÄ, Helmut. Hans Staden e sua época. In: Revista de História. Vol. XX, Ano XI, abril-junho. Separata número 42. São Paulo, 1960, p. 289-307.

AVÉ-LALLEMANT, Robert. Hans Staden von Homberg bei den brasilienischen Wilden oder die Macht des Glaubens und Betens. Hamburg: Wichernhaus, 1871.

DAVI. Livro dos Salmos. In: Bíblia Sagrada (Tradução: João Ferreira de Almeida). Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1987, p. 605-684.

LOBATO, Monteiro. Aventuras de Hans Staden. São Paulo: Brasiliense, 1998, 34ª. ed.

SANTANA, Vanete Dutra (2007): Lobato e os carrascos civilizados – construção de brasilidade via reescritura de Warhaftige Historia, de Hans Staden. 2007. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil (atualização do alemão e tradução para o português de Karl Fouquet, a partir da edição de Andreas Kolbe, de 1547). São Paulo: Sociedade Hans Staden, 1941.

__________ (1926) Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil (Ordenação literária: Monteiro Lobato). Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1926, 2ª ed.

 

 

Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Referências à etnia negra em O choque das raças ou o presidente negro - um romance do ano 2228

           O livro O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228 , de Monteiro Lobato, recentemente passou a ser apontad...

Leia também