Hans Staden – Autoridade sobre o Brasil?
Dra. Vanete Santana-Dezmann
“À
entrada de uma certa cidade erguia-se um grupo de mármore, que representava um
homem vencendo na luta ao leão. Passa um leão, contempla aquilo e diz: Muito
diferente seria essa estátua se os leões fossem escultores!” (Monteiro Lobato)
Até
recentemente, parece ter sido natural a representação das culturas de regiões
periféricas como um refletor das ideias forjadas no centro da cultura ocidental,
a Europa. Assim, o que foi produzido pelos europeus sobre a América Latina tem
sido considerado verdade absoluta. Um bom exemplo é a imagem sobre o Brasil
criada por Hans Staden em seu livro publicado em Malburg em 1557 sob o título “História
verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres
humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus
Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de
Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria, e que agora traz a
público com essa impressão”*.
Staden
disseminou, na arte e na literatura, a imagem de um Brasil selvagem, povoado
por índios canibais, dos quais conseguiu se libertar de forma heroica. Mas quem
era Hans Staden e quais foram seus feitos?
Staden
era um jovem de vinte e poucos anos quando resolveu conhecer as Índias
Orientais. Isto foi em 1547, durante o período áureo despertado pelas grandes
navegações e pela exploração do Novo Mundo. Suas aventuras, porém, tiveram
início antes mesmo de deixar o continente europeu, como faz questão de frisar
enquanto uma identidade heroica é construída para si. De Homberg, sua cidade
natal, ele viajou para Bremen e de lá para Kampen, nos Países Baixos, de onde
embarcou em um navio mercante com destino a Setúbal, em Portugal, seguindo para
Lisboa, onde pretendia se juntar à tripulação de algum outro navio que fosse
para as Índias Orientais – a atual Índia. Como não restava nenhum, embarcou
para a colônia portuguesa das Índias Ocidentais – o atual Brasil – como
artilheiro no navio do Capitão Penteado – um misto de navio mercante e de
guerra –, partindo de Lisboa em junho de 1548.
O navio foi abastecido na Ilha da Madeira e depois se
dirigiu a Marrocos. Lá capturou um navio mercante mouro e retornou à Madeira
para deixar as mercadorias apreendidas. Depois foi para Olinda, onde pretendia
deixar alguns prisioneiros e mercadorias para abastecer os colonos. No entanto,
no momento em que chegou a Olinda, os caetés haviam sitiado o povoado vizinho,
Igaraçu, e alguns homens do Capitão Penteado foram requisitados para lutar ao
lado dos portugueses do povoado – Staden se encontrava entre eles. Quando,
pouco depois, o cerco chegou ao fim, o capitão e sua tripulação seguiram para a
Paraíba, onde atacaram um navio francês que estava sendo carregado com
pau-brasil. Em seguida, rumaram para Portugal, chegando em Lisboa em outubro de
1549.
A segunda viagem começou
No
final de 1550, o navio
Quando
as autoridades de São Vicente souberam do naufrágio, enviaram um navio para
buscá-los. Posteriormente, Staden foi para Bertioga e acabou sendo empregado
como artilheiro do Forte de São Felipe, que ficava na Ilha de Santo Amaro.
Segundo afirma, ninguém se arriscava a trabalhar lá, pois todos temiam os
constantes ataques dos tupinambás. O caro leitor deve presumir, então, que
Staden era muito corajoso, pois contava com o auxílio de apenas um carijó e
dois portugueses e, mesmo assim, se passaram mais de três anos até que fosse
capturado – provavelmente no fim de 1553 ou início de 1554. Debalde os portugueses
e seus aliados, os tupiniquins, tentaram resgatá-lo. Fora levado para Ubatuba.
De
acordo com sua própria narração, Staden se passara por francês para não ser
tratado como inimigo pelos tupinambás, que eram aliados dos franceses. Isto o
manteve fora de perigo por algum tempo. A chegada de uma pequena expedição de
resgate, junto à qual se achavam alguns de seus companheiros de naufrágio,
contribuiu para a manutenção da farsa – como um deles era francês, Staden
inventou que eram irmãos e, afirmando que os portugueses do navio o mantinham
como prisioneiro, disse aos tupinambás que pediria a seu irmão que, assim que
fugisse, fosse à França, conseguisse um bom resgate e retornasse para buscá-lo.
Assim, os tupinambás concordaram em mantê-lo vivo até que o resgate chegasse.
Staden
foi poupado, portanto, não graças a sua coragem. Obviamente, seu falso irmão
francês jamais retornou e, com suas inúmeras demonstrações de covardia enquanto
vivia na tribo, teve seu valor depreciado pelos índios, que provavelmente já
não se disporiam a se alimentar com sua carne, segundo suas crenças, impregnada
com características morais que não desejavam para si.
No entanto, uma vez que aquele jovem aventureiro afirmou estar contando a verdadeira história de um país de selvagens nus e canibais chamado Brasil, não só a região à qual se referia (uma pequena parte do atual litoral paulista habitada pela tribo Tupinambá no século XVI), mas todo o país que aquela pequena parte viria a compor, passou a ser representado como uma terra exótica, onde cobras e selvagens enfeitados com penas se misturam pelas ruas, sem se levar em conta que o objeto das observações de Staden de modo algum condiz com o que chamamos Brasil – este é o principal ponto a se observar. Outro ponto, periférico, porquanto a figura histórica Hans Staden incontestavelmente existe, é sua existência concreta – será que Hans Staden realmente existiu? Teria sido ele um personagem criado pelo médico Johannes Dryander? Seria este o verdadeiro autor do famoso livro?
Há muito mais sobre o
tema em Hy Brasil - A construção de uma nação.
* Título original: „Warhafftige Historia vnnd
Beschreibung einer Landtschafft der Wilden Nacketen Grimmigen Menschfresser Leuthen/in der Newen Welt America gelegen vor vnd nach
Christi geburt im Land zu Hessen vnbekant bisz auff diese lj. nechst vergangen
jar Da sie Hans Staden von Homberg ausz Hessen durch sein eygene
erfarung erkant vnd jetzt durch den truck an tag gibt“
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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