O nosso idioma é a Língua Portuguesa do Brasil
Dra. Vanete Santana-Dezmann
A distinção entre o sujeito brasileiro e
o sujeito português, bem como a legitimação da relação do brasileiro com a
escrita de sua língua, foram assinaladas no fim do século XIX pela elaboração
de gramáticas do português do Brasil empreendida in loco. A partir do momento em que se tem uma língua e uma
gramática desta língua, têm-se, oficialmente, sujeitos desta língua, ou seja,
têm-se, no caso, o sujeito brasileiro e a nação brasileira – ambos legitimados.
Assim, percebe-se que, mais do que conter um saber sobre a língua nacional, a
gramatização de uma língua constitui o sujeito nacional na medida em que a
individualização do país se relaciona intrinsecamente à individualização de seu
sujeito político e social. Com relação a esta individualização da língua portuguesa
no território que viria a constituir o Brasil, divisam-se quatro fases distintas.
A primeira
teria se iniciado por volta de 1530, com a colonização, estendendo-se até 1654,
quando os holandeses deixam a América Portuguesa. Durante este período, praticava-se
na colônia, além do português e do holandês, centenas de línguas e dialetos
indígenas, distribuídos entre 94 famílias, pertencentes a 40 troncos
linguísticos, além das línguas gerais.
Os catequistas, logo ao chegarem,
esforçaram-se para aprender as línguas locais, sobretudo com as crianças
indígenas. Deste esforço de comunicação, nasceram as línguas gerais – um dos
elementos mais importantes na manutenção da unidade territorial. Falava-se
cotidianamente a língua geral, enquanto o português de Portugal ficou restrito
aos contextos formais e foi adquirindo vocábulos de origem indígena,
principalmente os usados para designar os nomes de animais, rios, montanhas e
utensílios domésticos de origem indígena.
A segunda fase se estenderia até 1808,
quando a família real portuguesa se fixa na colônia. Sem a concorrência com a
língua holandesa, a língua portuguesa ainda precisaria suplantar as línguas
indígenas e a língua geral local. A
tarefa não era fácil, porquanto, até o século XVIII, o português era aprendido
pelas crianças apenas na escola, como língua estrangeira. Porém, nesta segunda
fase, a colonização se torna mais efetiva, incluindo medidas diretas e
indiretas que resultariam no fim do uso da língua geral paulista. Uma das
medidas diretas foi sua proibição, pelo Édito dos Índios. Além disso, o
incremento da população portuguesa recém-chegada à colônia e do tráfico de
africanos subsaarianos contribuiu indiretamente para a decadência da língua
geral paulista, pois o português passaria a ser a língua franca também para os
africanos residentes na colônia portuguesa americana, agora mais babélica do
que nunca, dada a afluência de falantes de diversas línguas africanas e de
diferentes dialetos da língua portuguesa, trazidos por colonos oriundos de
diferentes regiões da metrópole. Foi neste contexto que o português – um
português já diferente do de Portugal – tornou-se a língua oficial do Estado (o
Estado Português estabelecido na América) e foi se firmando como a língua mais
falada na colônia.
Só a partir de meados do século XIX,
após a independência política e em um contexto dominado pelas ideias importadas
do romantismo europeu, pelo fim do tráfico de escravos e suas consequentes
mudanças nas relações de produção, é que tem início uma reflexão local sobre a
língua que suplantara as demais, vindo a se consolidar como língua nacional.
Em 1853, José Feliciano de Castilho
escreve a Antônio de Meneses Vasconcelos Drummond, ministro do Brasil em
Lisboa, referindo-se ao fracasso na tentativa de fazer com que sua gramática –
o Método Castilho, cuja primeira
edição data de 1850 – fosse adotada no Brasil. No mesmo ano, ele escreve a D.
Pedro II pedindo apoio para a adoção de sua cartilha na ex-colônia e, em 1857,
dedica a quarta edição ao Império do Brasil. Estes episódios demonstram a
resistência nascente na ex-colônia à língua portuguesa importada de Portugal.
Tal resistência toma forma em 1857, com a publicação de Vocabulário brasileiro para servir de complemento aos dicionários de
língua portuguesa, de autoria de Costa Rubim. Ou seja, a diferença entre o
português de Portugal e o do Brasil é assumida com a publicação de um embrião
de dicionário de português do Brasil.
O primeiro dicionário completo produzido
no Brasil, ou seja, o primeiro dicionário brasileiro e que se apresenta como
tal data de 1888, como resultado dos estudos de lexicografia de Soares: Dicionário brasileiro da língua portuguesa.
Também é dele a afirmação de que o brasileiro deveria assumir sua língua, mesmo
em contextos formais, na fala e na escrita. Uma colocação como essa, bem como o
título de seu dicionário, leva-nos a perceber que se reconhecia, na época, a
existência de uma nação brasileira e da língua portuguesa do Brasil como
independente da de Portugal. Porém, em 1802, uma consciência nacional como a
revelada por Soares ainda era insipiente. O epítome da gramática portuguesa, por exemplo, publicado naquele ano em
Pernambuco por Antônio Moraes Silva, pode ser considerado um livro português,
pois, segundo Antenor Nascentes, não deu importância às diferenças pertinentes
ao português falado pelo brasileiro. Ou seja, no início do século XIX, existia
um povo que se pode chamar brasileiro e uma língua portuguesa que apresenta
diferenças em relação à língua de Portugal, mas não a expressão, em obras concretas,
de uma consciência disso. Talvez a primeira expressão desta consciência se
encontre nos esforços das oligarquias locais que contribuiriam para a
independência política, datada de 1822, embora o processo de independência
tenha resultado mais de uma reação destas oligarquias à política econômica do
governo português do que de um sentimento de patriotismo ou nacionalismo
brasileiro.
É de 1835 a publicação do Compêndio da gramática da língua nacional,
de Antônio Álvares Pereira Coruja,
que vai ser considerada por Nascentes como inaugural da gramaticografia
brasileira. Ainda segundo Nascentes, Coruja teria sido responsável também pelo
início dos estudos sobre dialetos no território brasileiro ao publicar, em
1852, Coleção de vocábulos e frases
usados na província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. Assim, temos que
recuar para 1835 o reconhecimento de características próprias – e esforço no
sentido de demarcá-las – a uma língua brasileira e, por extensão, de um povo
que a fala. Neste contexto, gramatizar o português do Brasil representava mais
do que uma atitude restrita ao campo do saber; tratava-se de uma atitude
política uma vez que, ao se tornarem autores de gramáticas, os gramáticos
brasileiros asseguram para si a autoridade sobre a língua portuguesa do Brasil.
Consequentemente, asseguravam também uma posição de destaque intelectual e de
autoridade em relação às especificidades do português no Brasil.
O período posterior ao do início da
gramatização do português brasileiro – terceira fase – é marcado pela fundação
da Academia Brasileira de Letras (1897) e pela polêmica causada pelas correções
do texto do Código Civil, de Ernesto Carneiro Ribeiro, feitas por Rui Barbosa
entre 1902 e 1905 – demonstrações da ascensão da defesa do purismo linguístico
no território brasileiro, que toma a norma classicista de Portugal como
parâmetro para o português do Brasil. A partir da segunda década do século XX,
inicia-se a publicação de estudos sobre os dialetos do português local, sendo o
marco inaugural da dialetologia brasileira a obra Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral, datada de 1920. Assim, nesta
época, registram-se duas tendências – de um lado estavam os chamados
nacionalistas e, do outro, os puristas. É desta época, também, a legislação
sobre o idioma nacional, que determinaria o nome da língua falada no Brasil. A
despeito dos esforços dos nacionalistas para que ela se chamasse língua
brasileira, venceram os puristas e se manteve o mesmo nome da língua de Portugal:
Língua Portuguesa. Além de fortalecer a independência da ex-colônia, a
gramatização – que se presta como instrumento para o estabelecimento das
diferenças linguísticas e, por extensão, culturais – também funcionaria a favor
do classicismo e purismo linguístico, passando a fixar normas para se definir o
que seria correto e incorreto. Mas a preocupação em torno da denominação do
idioma nacional, independentemente do lado defendido (nacionalista ou purista),
obliterou o fato de que até hoje há muitas outras línguas, além da língua
portuguesa, faladas no território nacional – foram apagadas todas as línguas
indígenas e as línguas dos imigrantes utilizadas no território nacional e se
gerou um movimento de busca de certa unidade da língua portuguesa escrita do
Brasil com a de Portugal. Assim, se, por um lado, a gramatização do português
do Brasil se mostra não apenas como um processo de construção de um saber sobre
a língua nacional, mas, sobretudo, como um processo de constituição de um
sujeito nacional – o cidadão brasileiro –, que se caracteriza por uma língua própria,
por outro, traz consigo o apagamento das diferenças internas e a consequente
desvalorização dos elementos nativos e demais oriundos de culturas não
ocidentais. A insistência no silenciamento de parte de seus constituintes – o
indígena e o negro – reforçaria o complexo de inferioridade inerente ao sujeito
nacional, herdeiro também do índio e do negro.
De qualquer forma, no decorrer do
movimento de gramatização do português local, podemos identificar o nascimento
do Brasil e de sua língua, pois nesta época se encontram as circunstâncias
específicas que possibilitaram o desenvolvimento de uma língua que já não mais
correspondia à de Portugal e estão finalmente reunidos, há tempo suficiente e
em grande proporção, os povos que constituem a base do brasileiro.
O marco apontado para o início da quarta
fase, em 1826, é a proposta feita por um deputado do recém-formado Império do
Brasil de que os diplomas de médicos emitidos no país fossem escritos no que
ele chamou “linguagem brasileira”. A independência política, que se dera quatro
anos antes, reconhecidamente movida por fatores econômicos, talvez possa
assumir, neste contexto, contornos um pouco diferentes. Talvez, concomitante
aos fatores econômicos, possamos identificar, conforme sugestões anteriores, a pressão
de um povo que começa a se identificar como brasileiro.
Como parte do mesmo processo e contexto,
no ano seguinte tem lugar uma série de discussões sobre a língua a ser ensinada
na escola. Havia, então, uma corrente em defesa do ensino da ortografia e
gramática da língua nacional – o português do Brasil. O processo de assimilação
do estrangeiro, do colonizador, encontra-se evidente, inclusive na produção
literária de Alencar, atacada pelos que contestavam o português brasileiro.
Nesta época, o brasileiro já se sente no direito de produzir suas próprias
gramáticas, dicionários e literatura. Assim, a noção de pertencimento da língua
portuguesa ao Brasil vai se fortalecendo à medida em que a língua portuguesa
aprofunda suas relações com as línguas indígenas, gerais e africanas. Ou seja,
é só no início do século XIX que as manifestações do sentimento de ser
brasileiro, em oposição a europeu, índio e negro, tornam-se palpáveis,
juntamente com o nascimento de uma língua que se pode chamar brasileira e de
sua literatura. Logo, o nascimento do Brasil como nação, e de um povo
brasileiro, encontra-se profundamente relacionado ao nascimento de uma língua
brasileira, de uma literatura brasileira, enfim, de uma cultura brasileira.
A língua portuguesa do Brasil é o resultado
da instauração de um espaço-tempo inerente às condições propiciadas pela
América Portuguesa. A língua que se desenvolveu sob as novas condições – a
língua portuguesa do Brasil – já não podia ser confundida com a língua de
Portugal uma vez que ambas se historicizam de maneiras diferentes em sua
relação com a formação dos países. Assim, embora o português do Brasil e o de
Portugal pareçam ter a mesma materialidade empírica e embora pareçam ser uma
mesma língua, apresentam diferentes sistemas simbólicos, diferentes
materialidades histórias e, consequentemente, diferentes memórias, pois sua
historicização ocorreu de modos diversos, considerando-se sua relação com a
formação dos dois países. Logo, são línguas diferentes.
A diferença entre ambas começou a se
constituir no momento em que os primeiros colonizadores portugueses chegaram à
colônia, pois, mesmo usando sua língua materna para nomear o que nela
encontraram, o deslocamento para uma realidade diferente daquela com que
conviviam em Portugal os levou à necessidade de saber como as pessoas que já se
encontravam no local nomeavam as coisas ao seu redor, sobretudo aquelas
inexistentes em Portugal e, portanto, até então não nomeadas em língua
portuguesa. Deste modo, a língua do colonizador foi se descaracterizando pela
adição de palavras de outras línguas e pelo necessário deslocamento de sentido
de palavras de sua língua, passando estas a assumir diferentes sentidos e
nomear diferentes referentes, por um processo que poderíamos chamar adaptação.
Deste modo, foi se formando uma memória linguística diferente da registrada em
Portugal e proporcionada pelo deslocamento – não só do tempo e espaço, mas
também da memória, na relação palavra/coisa – gerador de um espaço de
interpretação diferente do de Portugal e por uma historicização também
diferente da que gerou a língua portuguesa em Portugal. Muitas palavras foram
perdendo a relação que tinham com os referentes em Portugal e, pelo
deslocamento (ou adaptação), adotaram outros referentes. Ao atingir este ponto,
chegou o momento de ser dicionarizada e gramatizada, pois se tornou possível
constatar a existência de variações desta nova língua portuguesa.
Ao ser gramatizada e historicizada, a
língua portuguesa do Brasil se universalizou, devido à padronização, e se unificou
– ainda que esta unidade seja imaginária, apenas uma construção, pois, como já
vimos, algumas línguas indígenas continuam a ser faladas ainda hoje e,
lembremo-nos, existem colônias de estrangeiros em que a língua portuguesa não é
utilizada. Foi, pois, por meio da gramatização que se construiu no Brasil uma
identidade linguística e cultural, porquanto a língua é um dos elementos
básicos entre os que formam a cultura de um povo. Após o reconhecimento da
unidade, ocorreu o natural reconhecimento das variedades e, desta forma, o
Brasil passou a ter o seu português padrão, diferenciado dos coloquialismos e
regionalismos, influenciados, sobretudo, pelas línguas indígenas e africanas.
Tal diferenciação lhe conferiu identidade interna. A identidade externa lhe foi
conferida pela diferenciação em relação aos lusitanismos. Tanto a identidade
interna quanto a externa tomam o Brasil e a sua língua padrão como referência,
sendo esta identidade relativa decisiva para a construção da unidade nacional.
Logo, devido aos diferentes processos de historicização, o uso do português não
confere a portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos e a tantos outros
cidadãos de países que o têm como língua oficial uma mesma identidade – nem
nacionalidade –, uma vez que a língua portuguesa destes diferentes
estados-nações apresenta diferenças entre si, embora aparentemente, e apenas
aparentemente, lembremo-nos, possa ser considerada uma mesma língua. Assim
também, por ser o resultado de um processo de historicização, a relação entre
língua e identidade – cultural, nacional, política etc. – é direta.
Obviamente, não se pode precisar quando
nasceu a língua portuguesa do Brasil, assim como não se pode precisar a partir
de qual momento o latim deu origem às línguas neolatinas ou o anglo-saxão ao
inglês, por exemplo, pois a transformação de uma língua em outra é gradual,
porém nos foi possível flagrar, ao longo da história do Brasil, alguns momentos
em que o esforço no sentido de fixar a nova língua teve lugar.
Tomando, portanto, a gramatização do
português do Brasil como parâmetro para o reconhecimento de uma língua
brasileira, e de tudo mais que isso implica, podemos identificar o nascimento
da língua portuguesa do Brasil e, portanto, uma das condições para o
reconhecimento de uma nação brasileira e de um Estado brasileiro, apenas a
partir de 1835, com a publicação da gramática de Coruja.
Quanto à manutenção do nome Língua
Portuguesa, ao invés de Língua Brasileira, como queriam os nacionalistas,
sobretudo hoje, em tempos de globalização, podemos desfrutar das vantagens que
ela nos proporciona. É bem diferente dizer a um estrangeiro interessado em
fazer turismo pelo Brasil ou nele instalar uma empresa que a língua oficial é o
português – aquela língua que faz parte da Comunidade Europeia – ou citar um
nome para o qual não se encontraria nenhum referente fora do próprio Brasil.
Observação: as informações e análises
aqui apresentadas se encontram mais completas no livro que em breve publicarei
na Alemanha e em minha tese de doutorado: SANTANA, V. D. Lobato
e os carrascos civilizados.
Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, p. 192. 2007.
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