1.1.21

A dicotomia tradutor/autor na leitura de “A tarefa do tradutor”, de Benjamin, por Derrida

A dicotomiatradutor/autor na leitura de

“A tarefa do tradutor”, de Benjamin, por Derrida[1]

 

Dra. Vanete Santana-Dezmann

         

   Jacques Derrida, retomando o mito da multiplicação das línguas, conforme relatado no Gênesis, inicia sua discussão em torno do que se chama original e tradução questionando a origem das línguas: “em que língua a torre de Babel foi construída e desconstruída?” (Derrida, 1985: 210). Babel, aqui, é concebida não apenas como representante da irredutibilidade da multiplicidade das línguas, mas também da impossibilidade de se completar, totalizar, uma construção. Assim, a multiplicidade de idiomas limitaria a “verdadeira tradução” e a possibilidade de uma interpretação que fosse transparente e considerada a mais adequada. Neste contexto, Babel não seria apenas um nome próprio, e sim uma metáfora, uma palavra com múltiplos significados, entre os quais confusão – das línguas e dos arquitetos diante da impossibilidade de completude de sua obra. Também significaria o nome de Deus, o Deus Pai: “o pai da cidade chamada confusão” (ibid: 211), onde a compreensão não é possível. Logo, conclui, Babel é o nome da origem da multiplicidade de línguas, a origem da necessidade de representação, das metáforas, do mito, a origem “da tradução inadequada que forneça o que esta multiplicidade nos nega” (ibid: 209).  Assim teria nascido a necessidade e a impossibilidade da tradução.

        Com o passar do tempo, a tradução – necessária e factual, embora impossível – acabou se tornando tema de pesquisa científica e muitas teorias se criaram em torno deste assunto. Porém, interessa a Derrida discutir a questão da tradução considerando-a não apenas um caminho de mão-dupla, mas como as teorias a têm abordado. Interessa-lhe pensar sobre a possibilidade de haver várias línguas no interior de um texto, o que o leva a se perguntar como interpretar o efeito desta pluralidade de línguas que um texto pode conter ao mesmo tempo e se é possível chamar de tradução a tradução de um texto escrito em várias línguas. A partir deste questionamento, Derrida retomou uma questão básica relativa à tradução, ou seja, a tarefa do tradutor – dando eco à voz e às idéias de Walter Benjamin.

            Quando se questiona a tarefa do tradutor, o tradicional estereótipo é o primeiro que se apresenta. Por exemplo, ao criticar a mais recente tradução de A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265–1321), datada de 1997, Maurício Santana Dias começa ressaltando seu fracasso:

 

é certo que toda nova tradução integral do poema de Dante é, em certa medida, uma tarefa de antemão votada [sic] ao fracasso. Isso porque é impossível sustentar, sem deixar esmorecer, a excelência e a intensidade desse poema de cem cantos. Só um outro Dante para conseguir isso – talvez nem ele, já que estaria tolhido pela necessidade de conformar-se à letra de um outro poeta. (Dias, 1999: 9, grifo nosso)

 

Após essas considerações, o que resta ao leitor brasileiro que não conhece a língua de Dante e gostaria de ler sua obra é se conformar com sua inacessibilidade ou aprender italiano.

O pressuposto de que o fracasso é inerente à tradução de uma obra do quilate d’A Divina Comédia é tão patente para o crítico que ele se sente quase obrigado a justificar não o fracasso – que já era esperado – mas por que o tradutor Italo Eugênio Mauro, embora devesse estar ciente – como qualquer um, conforme suporia o crítico – de que não obteria sucesso em sua empreitada, entregou-se a ela durante “12 anos de dedicação exclusiva”. Segundo o crítico, trata-se, obviamente, de loucura, “loucura dos que se apaixonam por um determinado objeto e o perseguem, obsessivamente, até o fim” (ibid: 9).

Ao fixar o fracasso como inerente ao ato tradutório, Dias ressalta os defeitos, erros e problemas da tradução, que ora “sacrifica a força do original”, na tentativa de assegurar o “sentido literal, o metro e a rima”, ora sacrifica o léxico, dado o caráter pudico do tradutor que, “tão fiel à literalidade, evita cuidadosamente a tradução direta de certas expressões dantescas, preferindo recorrer a eufemismos” (ibid: 9).

Enfim, sacrifício, fidelidade, texto original, sentido literal e, mais que qualquer outra, fracasso são palavras-chave em seu discurso. Porém, seu artigo não representa um caso isolado. Ele reproduz e dissemina a concepção de tradução à qual subjaz a noção de que o texto de partida detém um significado definido e estável, o significado por excelência, e que caberia ao tradutor, na qualidade de leitor, identificar as intenções do autor, ao decifrar o significado de seu texto, e reproduzi-lo fielmente em outra língua.

As palavras de Carlos Heitor Cony relativas à tradução do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, feita por Milton Amado, dão-nos outro exemplo da aplicação dessa concepção de tradução à crítica:

 

apesar de o poema ter merecido a atenção de dois monstros sagrados de nossa literatura (Machado e Pessoa), o trabalho de Milton Amado, modesto redator provinciano em Minas Gerais, é disparadamente o melhor, tanto do ponto de vista técnico, como da fidelidade interna ao poema. (Cony, 1998:11)

 

Ainda tratando das diversas traduções que esse poema de Poe mereceu, deparamo-nos com outras críticas que invariavelmente reproduzem a mesma concepção que permeia a opinião de Cony. Para Ivo Barroso, mesmo que tais traduções tenham sido feitas por excelentes tradutores, não têm o mesmo viço que o original:

 

é forçoso reconhecer que, comparadas ao original, elas nos fazem pensar em ectoplasmas poéticos aos quais faltasse um corpo, uma forma física que lhes desse voz, o viso e o vulto da criatura viva: a essência (ou alma) da narrativa ali está, mas lhe falta a sonoridade da orquestração que lhe daria corpo, que completaria a dualidade indissolúvel. [E sentencia:] Evidentemente que nenhuma tradução consegue preservar todos os elementos do original. (Barroso, 1998: 14 e 16)

 

Ao lermos as críticas de Dias, Cony e Barroso, percebemos que, para eles, assim como para vários de seus colegas de profissão e para os teóricos em cujas cartilhas estudaram, o tradutor é, a priori, um devedor, alguém que tem a tarefa de restituir algo – o sentido do texto. O caso da tradução dos contos de Edgar Allan Poe por Charles Baudelaire, porém, poderia contradizê-los, uma vez que, se a obra de Poe sobrevive, é porque o próprio Poe, como autor, passou a ter vida concreta a partir da publicação das traduções de suas obras empreendidas por Baudelaire: “Seria pouco provável que ele [Poe] fosse lembrado se Baudelaire não o tivesse introduzido no domínio francês e se o renome deste estrangeiro não fosse mais alto entre nós [franceses] que nos países de língua inglesa” (Cabau, 1960: 5). Mas talvez atribuíssem as qualidades que tradicionalmente se apontam nas traduções de Baudelaire à fidelidade do tradutor – o autor de As flores do mal – ao texto original. Mas como saber o que Poe realmente quis dizer e como garantir que ele não quis dizer nada diferente?

            Tais questões nem ao menos são aventadas pelos teóricos estruturalistas. Seria porque a base de suas teorias se encontra na concepção de tradução como transporte de sentidos de uma língua para outra? – “o solo da tradução não acaba de se retirar desde o instante em que a restituição do sentido [...] deixa de ser o padrão?” (Derrida, 1985: 221).

Considerando a sentido como o que era dado primeiramente – ou, em outros termos, originalmente, pelo original –, encontramos a raiz do tradicional conceito de tradução, segundo o qual a tarefa do tradutor seria restituir o sentido do original. Porém, uma vez que Derrida não compactua com a concepção de que haja um sentido por excelência a ser recuperado, conseqüentemente, para ele, sua restituição não pode ser a tarefa do tradutor. Qual seria, pois, tal tarefa?

Para Benjamin, na interpretação de Derrida, caberia ao tradutor manter vivo o texto, garantir-lhe sobrevida:

 

Ele [Benjamin] nomeia o sujeito da tradução – enquanto sujeito endividado, obrigado por um dever, já em situação de herdar – a se inscrever como sobrevivente ou agente de sobrevida; a sobrevida das obras, não dos autores; talvez a sobrevida dos nomes dos autores e das assinaturas, mas não dos autores. (ibid: 223)

 

Ainda a partir de Benjamin, Derrida levanta algumas hipóteses sobre tradução que invalidam a concepção tradicional de tradução como restituição de sentido. Contrariando a tese de que o tradutor é alguém comprometido com os objetivos de sua tradução em relação ao público ao qual ela se destina, Derrida afirma que a tarefa do tradutor não está diretamente relacionada à recepção:

 

A tarefa do tradutor não se anuncia desde a recepção. A teoria da tradução não depende, no essencial, de nenhuma teoria da recepção, mesmo se ela puder inversamente contribuir para torná-la possível e levá-la em conta. (ibid: 223)

 

Também afirma que não existe qualquer relação de reprodução entre texto de partida e texto de chegada: “Se há entre texto traduzido e texto traduzente uma relação entre ‘original’ e ‘versão’, [esta relação] não deveria ser ‘representativa’ ou ‘reprodutiva’ [uma vez que] A tradução não é nem imagem nem cópia” (ibid: 224). Logo, a tarefa do tradutor não o comprometeria com o autor do texto de partida – que morre ao concluir seu texto, uma vez que perde seu poder sobre sua criação, que passa a ter vida própria. Se ele está comprometido com alguma coisa, é com o próprio texto, este sim, passível de imortalidade. E a esta imortalidade – ou, nas palavras de Derrida, sobrevida – do texto, vincula-se a possibilidade de tradução, transformação, em oposição a reprodução, cópia, que seria a mortificação do texto. O texto existe e continua existindo porque pode ser traduzido, transformado. Daí Derrida concluir que “O original se dá ao se modificar” (ibid: 226). Traduzir, então, revela-se como um processo de modificação, do qual depende a existência do texto de partida, sendo a tarefa do tradutor manter vivo o texto, dar-lhe sobrevida, por meio da transformação que a tradução opera sobre ele. Neste sentido, a tarefa do tradutor é a mesma que a do autor – dar existência (vida) ao texto – e complementar a ela – dar-lhe continuidade (imortalidade, sobrevida).

Assim, da mesma forma que o tradutor tem um comprometimento, um papel a desempenhar, uma “dívida”, com o texto, este também tem seu comprometimento, sua dívida, para com o tradutor, uma vez que o tradutor se revela agente de sua transformação. Portanto, ao contrário do que a crítica de tendência essencialista acredita, o texto é o primeiro a contrair dívida, uma dívida para com a tradução e, em última instância, para com o tradutor, porquanto depende dele para ser lido por quem desconhece a língua em que foi escrito anteriormente.

Aprofundando sua análise, Derrida afirma que a finalidade da tradução não é transportar significado, mas demonstrar a sua própria possibilidade – a possibilidade de se traduzir. Não devemos nos esquecer, porém, que o significado, o que uma frase deve querer dizer, continua dependendo do leitor, não no sentido de decodificador, mas como co-criador e co-produtor de sentido – e o tradutor é, também ele, leitor, daí sua dupla dimensão de agente criador: criador enquanto leitor de um texto a partir do qual escreve o seu próprio texto. Mas nem o escritor do texto de partida nem o escritor do texto de chegada têm total autonomia sobre o significado de seus textos e, portanto, não teriam como impor ao leitor um significado por excelência.

Para explicar a relação entre texto de chegada e texto de partida, no que se refere ao sentido-significado, Derrida retoma Benjamim e usa o que vamos chamar de “metáfora da tangente”. O texto de chegada seria a reta e, o texto de partida, a circunferência. Assim, o texto de chegada toca o texto de partida em um pequeno ponto do sentido. Apenas neste ponto de contato o tradutor reproduziria/restituiria o dito sentido original.

Deste modo, a questão da fidelidade na tradução é deslocada para um novo escopo que não mais tem como referência um modelo original. A fidelidade a que Derrida, inspirado pela leitura de Benjamin, chama verdade seria, pois, a pura linguagem – sendo a linguagem definida por Derrida como o ponto no qual sentido e letra não mais se dissociam (cf. ibid: 239). Assim, o texto de chegada e o texto de partida, juntos, constituiriam a língua maior, aquela que deu origem a todas, a língua pré-babélica. Neste sentido, talvez seja possível afirmar que o caráter de original só poderia ser atribuído a um texto idealístico e idealista, composto pelo texto de partida e pelo(s) texto(s) de chegada. A impossibilidade de tradução, ou o intraduzível de um texto, restringir-se-ia à aderência que existe entre seu conteúdo – qualquer que seja ele –, a língua e a forma na qual ele foi expresso. Daí a afirmação de que este lugar em que sentido e letra não mais se dissociam é o que assegura a originalidade de um texto.

Como este texto original não existe senão no universo das idéias, só nos resta um lugar em que a originalidade pode ser assegurada – e é nele que Derrida e a própria legislação sobre direitos autorais (cf. Santana, 2001: 68-91) se colocam para falar sobre o texto original de um autor. Este lugar é aquele onde signo, significante e significado se fundem, ou seja, o modo e termos empregados para expressar uma idéia, daí sua relevância: “Se tal lugar, o ter-lugar de tal acontecimento, ficasse perdido, não poderíamos mais, ainda que juridicamente, distinguir entre um original e uma tradução” (ibid: 239). Neste lugar, e apenas nele, é possível se aplicar a um texto o termo original e, a seu escritor, o termo autor.

Aqueles que ainda não o perceberam continuam definindo como original o texto que foi escrito primeiramente, de onde decorreria a impossibilidade de distinguir entre original e tradução quando os dados referentes a datas – um dos “elementos formais de distinção”[2] – não estivessem disponíveis.

Tomando como base o senso comum expresso pela crítica tradicional, segundo o qual o original é sempre superior, em termos de qualidade literária, à tradução, poderíamos adotar como regra que o texto que apresentasse maior qualidade, considerando o conjunto signo-significante-significado, seria o original. Para aplicá-la à prática, bastaria analisar se uma determinada idéia é expressa melhor por meio de um determinado conjunto de palavras que por outro, não nos esquecendo que estes conjuntos de palavras seriam expressos em línguas diferentes.

Há, porém, duas dificuldades apresentadas por esta regra. Uma delas é conseguir avaliar, sem a interferência da subjetividade, qual composição – aqui empregada como sinônimo do conjunto “signo-significante-significado” – soa melhor.  A outra é encontrar argumentos lógicos para defender que a composição do texto de partida sempre soa melhor que a do texto de chegada.

Se fosse possível à crítica uma análise objetiva que demonstrasse que determinadas construções são melhores que outras, seria possível dizer que um determinado texto está melhor escrito que outro. Porém, mesmo assim, não haveria como garantir que o texto melhor escrito é o texto de partida, caso contrário, o resultado seria que algumas traduções teriam que ser consideradas originais. Assim, a distinção entre original e tradução continuaria impossível e se criaria um novo problema. Por exemplo, constatando-se que um determinado texto apresenta o mesmo nível de qualidade – independentemente do que venha a ser qualidade, neste contexto – que outro, como se classificaria esta última? Uma tradução? Um “outro original”?  

Além disso, mesmo quando há traços identificáveis como indícios de que há um texto de partida que resultou naquele, nada justifica , conforme vimos, que se use a expressão texto original para denominar o texto de partida, pois tal expressão se encontra impregnada com a conotação de fonte primária, nunca antes concebida, depositária de um suposto real significado pretendido pelo autor e naturalmente superior, devido à precedência, a seus derivados. A simples constatação da existência de tais marcas também não as credencia como parâmetros, mesmo a especialistas em linguagem e poliglotas, para se afirmar que um determinado texto é tradução/derivado e outro é original/matriz/fonte.

            Podemos refletir melhor sobre esta questão ao nos reportarmos ao romance The marriageable daughter/La fille à marier, de Daniel Gagnon, um escritor franco-canadense que vive na fronteira entre duas línguas e duas culturas. Este seu romance é composto por uma série de cinqüenta cartas escritas pela protagonista-narradora chamada Jeanne. Ela tem 12 anos e escreve a uma amiga imaginária sobre seu amor impossível por Nicolas – já falecido –, sobre os homens mais velhos que abusam dela e sobre o desespero de não poder se comunicar com as pessoas que estão à sua volta. A versão em francês foi a primeira a ser publicada, em 1985. Posteriormente, em 1989, publicou-se a versão em inglês, como uma tradução do francês (cf. ibid: 68). Mas o autor afirma ter escrito o original em inglês. Analisando as duas versões, Sherry Simon afirma ter encontrado vários indícios de que a primeira versão realmente foi escrita em inglês, pois haveria “associações de palavras e imagens que de fato fazem mais sentido em inglês que em francês” (Simon: 1999: 68). Seus exemplos são retirados do seguinte parágrafo dos textos de Gagnon:

 

This letter to you in the Queen’s English, the wailing of a newborn infant in wanderings, roaming haphazardly, staggering, vacillating, wavering in vacuity in Canadian amptiness, freezing in the Police ice from sea to sea, glorious and free, we stand on guard for thee beneath the shining skies, our home and native land, and the poor Indians, the lost Indian summer, O chère Phillis, où es-tu, where are you?

 

Cette lettre dans une langue correcte, chant incohérent d’une nouveau-née régulièrement ballotée dans un sens et dans l’autre, errant au hasard, chancelante, vacillante, titubante dans la vacuité du vide canadien, se congelant dans la glace du pôle d’une mer à l’autre, glorieux et libres nous nous tenons au garde-à-vous sous les cieux illuminés de notre pays, et les pauvres Indiens, l’été indien perdu, ô dear Phyllis, where are you?

 

Do inglês, ela destaca as expressões Queen’s English, from sea to sea e glorious and free como “mais fortes e mais coerentes que os equivalentes sugeridos em francês” (ibid: 69): une langue correcte, d’une mer à l’autre e glorieux et libres.

Porém, ela também destaca outras construções que parecem fazer mais sentido em francês que em inglês, afirmando que je suis sur le pas de la porte, pas de pas de valse, pour céder le pas aux bêtes immondes e leur permettre de passer soam melhor que I am standing in the doorway, on waltz steps, to give the filthy beasts precedence e allow them to pass e que “O jogo de palavras em torno de ‘pas’ no texto em francês não é reproduzido no texto em inglês”, acrescentando que “há algo extra-material na versão em francês que não existe na versão em inglês”. Após constatações como estas, ela chega à conclusão de que “De fato não há como declarar qualquer um destes textos como original” (ibid: 69).

            Como Gagnon afirma ter escrito o texto de partida em inglês, ele teria optado por “traduzir” a expressão Queen’s English por une langue correcte, o que pode denotar que ele não queria denunciar que o texto foi escrito primeiramente em francês (cf. ibid: 68), caso contrário, poderia ter escrito L’anglais de la Reine ou, se quisesse uma “equivalência perfeita” – como parece sugerir sua “tradução” da frase “O chère Phyllis, où es-tu, where are you?” por “oh, dear Phyllis, where are you” –, poderia ter empregado algo semelhante a Le Français du roy, em referência a um francês padrão, a despeito de a personagem ser uma canadense e de a situação de ex-colônia talvez não favorecer a visão da língua dos reis da França como padrão. Provavelmente realmente não procurasse uma “equivalência perfeita”, pois mesmo a frase que parece indicar a busca pela “equivalência perfeita” apresenta diferenças: em lugar de oh, dear Phyllis, where are you, où es-tu?, que seria a tradução de O chère Phyllis, où es-tu, where are you?, ele usa simplesmente oh, dear Phyllis, where are you?

Com relação às observações de Simon, podemos nos perguntar se a expressão from sea to sea soa melhor em inglês que d’une mer à l’autre em francês, ou se de mer à mer soaria muito estranho. Como saber? Mesmo que se questionasse falantes nativos de inglês, o resultado seria sempre subjetivo e, como tal, variável, dependente de fatores diversos. Finalmente, que argumentos sustentariam que glorious and free soa melhor em inglês que glorieux et libres soaria em francês?

            As opções de tradução oferecidas por Gagnon não nos remetem diretamente à idéia de que a versão francesa é necessariamente a tradução da versão inglesa, mesmo se o argumento usado a favor desta tese for o reconhecimento de que a expressão Queen’s English já está cristalizada na língua inglesa, pois quem pode afirmar que o escritor do texto de partida sempre fará melhores escolhas lexicais que o escritor do texto de chegada? – ou que, ao escrever o texto de partida, Gagnon fez melhores opções que ao escrever o texto de chegada? Também há a possibilidade de o escritor do texto de partida escolher propositalmente expressões não correntes na língua em que escreve para provocar no leitor a estranheza e suscitar nele a hipótese de que tem em mãos uma tradução – principalmente ao se considerar o contexto.

            Percebe-se, pois, que o jogo no qual Gagnon nos envolve é exemplar quando se trata de questionar a existência de parâmetros, ou mesmo pistas, inerentes ao texto que possibilitariam a distinção entre texto de partida e tradução.

Conhecendo a concepção de caráter tradicional segundo a qual há marcas lingüísticas características de tradução – mesmo não sendo possível identificá-las em todas as traduções, como constatamos –, o autor constrói, como um arquiteto, dois textos labirínticos que levam aqueles que procuram nas marcas lingüísticas a solução para o enigma em que se constitui a diferenciação entre original e tradução a se perder por encruzilhadas que só podem conduzir a uma saída: não há elementos textuais que permitam distinguir com precisão tradução de original, como Simon acaba por reconhecer (cf. ibid: 69). Uma constatação como esta apresenta ao menos duas implicações. Primeira: o reconhecimento de que tradução não pode ser definida como versão inferior de um texto, sendo o tradutor um mero técnico, incapaz de criar, de fazer escolhas e de lidar com a linguagem tão bem quanto o dito autor. Segunda: só mereceria boa crítica a tradução na qual o crítico fosse capaz de enxergar alguma fidelidade ao texto original.

Ao menos no caso dos críticos brasileiros citados anteriormente, percebe-se o reconhecimento de que a recuperação total da forma e conteúdo/significado de um texto é impossível. Talvez no reconhecimento, ainda que não explicitado, desta impossibilidade se encontre a fonte de suas críticas negativas às traduções, e não necessariamente nos textos que criticam.

Como as discussões sobre tradução que buscam estabelecer uma posição melhor para esta necessariamente implicam o questionamento da possibilidade da existência de significados estáveis e inerentes ao texto e da própria originalidade do material intelectual, que fatalmente conduziria ao questionamento das bases que mantêm o dito original em posição superior, tais discussões e implicações como a que acabamos de sugerir são evitadas sob o pretexto de que a tradução seria de fato uma atividade secundária. Mas se os teóricos considerassem os textos em si, provavelmente não encontrassem apenas defeitos literários a enumerar e tampouco argumentos ou explicações para tais defeitos.

Conhecendo-se a data de publicação de um texto, tem sido fácil determinar o texto de partida – simplesmente, adotando-se como critério a precedência cronológica. Porém, não seria coerente afirmar que esta precedência indicaria superioridade, como quer a crítica tradicional.

Como se vê, os dois critérios que se apresentam a partir de uma visão tradicional para assegurar a originalidade de um texto (a superioridade qualitativa e a precedência cronológica) não poderiam ser aplicados sem o risco de se incorrer em resultados contraditórios. Assim, ainda que adotássemos tais critérios, a originalidade assegurada seria passível de erro. Daí a necessidade de adoção de algum outro critério para assegurar, perante a lei, a originalidade de um texto.

Ao falar sobre o texto original de um autor, Derrida se depara com a necessidade de definir expressão em oposição a conteúdo e composição.

 

A expressão se opõe ao conteúdo, certamente, e a tradução, censurada para não tocar no conteúdo, só deve ser original no que se refere à língua como expressão, mas a expressão se opõe também ao que os juristas franceses chamam de composição do original. Em geral, colocamos a composição do lado da forma, mas aqui a forma de expressão, na qual podemos reconhecer a originalidade do tradutor e, por isto, o direito do autor-tradutor, está somente na forma de expressão lingüística, na escolha das palavras na língua etc, mais nada, em nenhum outro aspecto da forma. (Derrida, 1985: 240)

 

Conteúdo seria, pois, algo como a idéia contida no texto, o significado – independentemente, ressaltemos, do sentido deste significado. A expressão talvez pudesse aqui ser identificada com o signo. O significante não entra explicitamente nas considerações de Derrida, mas, uma vez que o significado é definido como a relação entre signo e significante, o significante seria o signo menos o significado. E a composição, que Derrida relaciona à forma – “forma de expressão lingüística, a escolha das palavras na língua etc” (ibid: 241) –, seria o que definimos acima como o conjunto formado pelo signo-significante-significado.

Tais definições se fazem necessárias para entendermos de que tratam os juristas franceses, e Derrida, quando consideram que o direito autoral abrange apenas a forma de expressão de um conteúdo, uma vez que as idéias e temas – componentes do conteúdo ou o próprio conteúdo – não são propriedade exclusiva de nenhum indivíduo, considerando-se que não há como determinar quem concebeu primeira e originalmente uma determinada idéia.

Neste ponto em que novamente discutimos a definição de original para tratarmos da definição de tradução, um olhar sob a perspectiva histórica – voltado para a tradução – se faz necessário.

Partindo da redefinição de tradução como “atividade altamente manipulativa que invoca os diversos estágios envolvidos no processo de transferência carregada de intenções de uma língua e cultura para outra e ,raramente, ou talvez nunca, envolvendo uma relação igualitária entre textos, autores e sistemas”, Susan Bassnett e Harish Trivedi (1999: III) mostram que a visão da tradução como inferior ao texto de partida é um fenômeno relativamente recente, datado do século XVI, coincidindo com a invenção e uso da prensa (cf. 1999: II). Antes disso, os conceitos de autoria e, por extensão, direitos autorais, original, plágio e tradução não existiam. Tais conceitos continuaram obscuros até o século XVII, quando a instituição de leis de direitos autorais se tornou necessária, coincidindo, não por acaso, segundo o neo-colonialilismo, com o início da colonização das Américas e da expansão colonial. Logo, aquele conceito da crítica tradicional – tradução como inferior ao original – seria explicado pela relação metafórica que se pode estabelecer entre metrópole e original em oposição a colônia e tradução (cf. 1999: III).

A partir desta observação, percebemos que a disputa entre diferentes linhas teóricas relativas à tradução não se circunscreve ao âmbito da estética literária, desenrolando-se em um contexto de disputa política e econômica, sendo que, neste contexto, a instituição de leis que estabelecem e protegem os direitos autorais se apresentam necessárias.

De fato, a relação entre autoria e originalidade só é estabelecida a partir do momento em que as relações comerciais desenvolvidas entre os diversos profissionais empregados na produção dos livros tiveram que ser regulamentadas para se justificar a divisão dos lucros praticada por aquele que detinha os meios de produção: o proprietário da prensa. Portanto, “longe de nascer de uma aplicação particular do direito individual de propriedade, a afirmação da propriedade literária deriva diretamente da defesa da livraria que garante um direito exclusivo sobre um título ao livreiro que o obteve” (Chartier, 1994: 38), pois, para assegurar o direito de propriedade ao livreiro, era preciso, antes, assegurá-lo ao autor. Neste sentido é que Denis Diderot, um dos responsáveis pelas idéias liberais propagadas na França revolucionária, estabelece que “o autor é dono de sua obra, ou ninguém na sociedade é dono de seus bens. O livreiro a possui como ela era possuída por seu autor” (apud Chartier, ibid: 39). Daí se observar nas leis de direitos autorais inglesa e francesa, instituídas a partir do século XVIII, que os direitos autorais não constituem as obras de um escritor como parte de seus bens, imprescritíveis e livremente transmissíveis. Como os interessados na criação da lei de direitos autorais não se dispunham a pagar perpetuamente pelos direitos a eles transferidos pelo autor, essa limitação do direito dos autores sobre suas obras teve que ser estabelecida, tendo como argumento a defesa de que as criações do espírito devem estar sujeitas às mesmas regras: “Uma invenção mecânica e uma composição literária são estritamente similares; logo, nenhuma delas pode ser considerada mais do que as outras como propriedade regida pelo direito costumeiro” (ibid: 41) e  nenhuma lei pode estabelecer o monopólio sobre as idéias, que constituem um bem comum a toda a humanidade.

Diante destes argumentos, os defensores do direito perpétuo contra-argumentavam que as idéias podem ser um patrimônio da humanidade, mas a forma de expressá-las é patrimônio de quem escreveu o texto.

Para chegar a um consenso, a legislação francesa acabou por estabelecer que a propriedade tem alcance apenas sobre a forma de expressão das idéias: “só a forma pode se tornar propriedade, e não as idéias” (ibid: 241).

 Assim, na argumentação a favor da propriedade do autor sobre o fruto de seu trabalho – a escolha e ordenação das palavras com que expressa determinadas idéias e conceitos – está o estabelecimento de relação entre autoria e originalidade: o autor é proprietário de sua obra porque nela expressa idéias por meio de uma forma original e passível de escolha para o modo de organizar os termos, também estes passíveis de escolha, uma vez que as línguas apresentam vários sinônimos para um mesmo termo.

Como se pode observar, o contexto que exige a definição de autoria em função da suposta originalidade não envolve questões estéticas, mas exclusivamente econômicas – e é neste contexto que a tradução, como atividade e resultado da mesma, passa a ser taxada como inferior. Porém, considerando-se que, em uma definição simples, a prática da tradução poderia ser vista como expressão de idéias não-originais por meio de outra língua, que apresenta aspectos lingüísticos diferentes dos apresentados pela língua de partida, estendendo-se desde o vocabulário até às estruturas sintáticas, fatalmente a tradução envolve uma forma de expressão original. Disto decorre outro parágrafo da legislação francesa que estabelece que “as traduções são obras originais somente na expressão” (ibid: 241). Ora, em que repousa, pois, a originalidade das obras ditas originais, inclusive ao se defender os direitos autorais, senão na forma de expressão original das idéias?

Se, conforme vimos, o direito de propriedade sobre as idéias não pode ser assegurado a ninguém, se a lei de direitos autorais reconhece que a autoria recai sobre a combinação de palavras escolhidas por um autor para expressar uma idéia e se a tradução é orientada pela escolha de palavras que resultarão em uma outra forma de expressar uma determinada idéia – que, lembremo-nos, faz parte do patrimônio universal –, perguntar qual a diferença entre autor e tradutor perde qualquer sentido. Considerar o texto de partida superior, neste contexto, também não faria sentido, tratando-se, antes, da afirmação de um pré-conceito que se impõe a despeito do reconhecimento de que a diferença é inerente à tradução e a despeito da percepção da relatividade do que se tem classificado como original.

 

 

 

Referências bibliográficas

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DIAS, Maurício Santana (1999). O desafio da “Comédia”. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 jul. Mais!, p. 9.

SANTANA, Vanete Dutra (2002). “Da tradução total à tradução impossível”. In: O tradutor como autor: transformação e sobre-vida do “original”. Dissertação de mestrado, UNICAMP, Campinas, 2002, p. 68-91.

SIMON, Sherry (1999). “Border writing in Quebec”. In: BASSNETT, Susan e TRIVERDI, Harish (Eds). Post-colonial translation. London e New York: Routledge, p 58-74.



[1] Este trabalho é resultante de pesquisa financiada pelo CNPq, instituição à qual agradeço.

[2] Para mais informações sobre “elementos formais de distinção”, pode-se consultar SANTANA, 2002.


Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 


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