1.1.21

"O Intérprete de males": uma nova metáfora de tradução

 O INTÉRPRETE DE MALES:

UMA NOVA METÁFORA DE TRADUÇÃO


                                                                                            Dra. Vanete Santana-Dezmann



             Ao se reencontrar, um grupo de velhos amigos – escritores e poetas distanciados pelo tempo – passa a relembrar o passado. É nesse contexto que surge o nome de Gallus e sua história vem à tona. Era muito inteligente, culto e talentoso, embora se recusasse a escrever por “si próprio”, preferindo a tradução; seu inglês era tão bom que diziam ter sido professor do príncipe de Gales, mas tinha um terrível defeito: era cleptomaníaco. Não lhe importava o valor ou a utilidade dos objetos, roubava-os porque furtar fazia parte de sua natureza. Um dos escritores o encontrara após ele ter cumprido pena por tomar a carteira de um comerciante; estava em situação lastimável e precisando de emprego. Então o escritor conseguiu que um editor amigo seu confiasse a Gallus a tradução de uma obra “sem importância”, uma novela que ambos julgavam desprovida de valor literário. A tradução ficou pronta muito antes do prazo, mas não agradou o editor. O escritor leu-a e não entendia o problema, pois as frases eram claras, bem compostas, espirituosas e engenhosas, muito melhores que no original, dizia ele. O editor lhe entregou o original, com o qual ele a comparou, linha por linha, surpreendendo-se cada vez mais. Logo no início, o original fazia referência a um castelo com trinta e seis janelas e quatro lustres de cristal. Na tradução apareciam apenas dezessete janelas e dois lustres. Em dado momento, o conde inglês, personagem da novela, tira mil e quinhentas libras da carteira; na tradução só havia cento e cinqüenta. Quanto às jóias que a condessa usara na noite do baile – tiara de diamantes, anéis de brilhantes, safiras e esmeraldas, colar de pérolas –, sumiram todas. Também desapareceram alguns tapetes, cofres e talheres de prata. Em alguns casos, o tradutor procedia de forma mais desonrosa, segundo seu bem-feitor; substituía as pedras e metais preciosos por outros sem valor – platina por lata, ouro por latão e diamante por zircônia ou vidro. Ao todo, do original perderam-se “1.579.251 libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérola, 181 relógios de bolso, 309 brincos, 435 malas, sem falar das propriedades, florestas e pastos, castelos de príncipes e barões e outros objetos menores – lenços, palitos de dente” (Kosztolányi, 2000, p. 10) – que, por existirem apenas na ficção, não justificavam uma investigação policial.

Personagem do úngaro Dezsö Kosztolányi, Gallus, o tradutor cleptomaníaco, materializa metaforicamente o comportamento atribuído ao tradutor pelas teorias de tradução de caráter essencialista, conforme apontou Rosemary Arrojo em seu artigo “Writing, interpreting, and the power struggle for the control over meaning – exemplary scenes from Kafka, Borges and Kosztolányi”.  Nessa concepção, o tradutor é visto como um mero transportador de significados incapaz de zelar pela mercadoria que transporta, perdendo-a no percurso, ou, pior, roubando-a. Daí a atenção de uma crítica invariavelmente preocupada com as infidelidades e que chega sempre à conclusão de que a tradução nunca vai ser tão boa quanto o original. Vejamos como exemplo o que diz Maurício Santana Dias sobre a tradução de A Divina Comédia feita por Ítalo Eugenio Mauro ao longo de nove anos:

 

... toda nova tradução integral do poema de Dante é, em certa medida, uma tarefa de antemão votada ao fracasso. Isso porque é impossível sustentar, sem deixar esmorecer, a excelência e a intensidade desse poema de cem cantos. Só um outro Dante para conseguir isso – talvez nem ele, já que estaria tolhido pela necessidade de conformar-se à letra de um outro poeta. (1999, p. 9, grifo nosso).

 

Outro exemplo pode ser encontrado nas palavras de Ivo Barroso, também tradutor:

 

            é forçoso reconhecer que, comparadas ao original, elas [as traduções] nos fazem pensar em ectoplasmas poéticos aos quais faltasse um corpo, uma forma física que lhes desse voz, o viso e o vulto da criatura viva: a essência (ou alma) da narrativa ali está, mas lhe falta a sonoridade da orquestração que lhe daria corpo, que completaria a dualidade indissolúvel. [e sentencia:] Evidentemente que nenhuma tradução consegue preservar todos os elementos do original (1998, p. 14-16, grifo nosso).

 

De fato, se observarmos as definições de tradução elaboradas por teóricos como Eugene Nida, Gerardo Vázquez-Ayora, Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet e J. C. Catford, nos quais a crítica parece se apoiar, constataremos que o denominador comum a todos é a necessidade que consideram inerente à “boa tradução” de se preservar o significado do original ou essência do texto de partida, sendo essa a característica básica dos teóricos denominados essencialistas.

Do reconhecimento do texto de partida como modelo a ser respeitado, decorrem as concepções de tradução como um ato de submissão e do tradutor como um servo compungido pelo dever de fidelidade ao “senhor texto original”. Como a diferença é inerente à tradução, sempre é possível enxergá-la quando a tradução é confrontada com o dito original. Por identificarem a diferença com a perda, os teóricos e críticos de caráter essencialista concebem o ato tradutório como um vício ou doença. O tradutor, por sua vez, é apresentado como vítima desse vício, alguém que não tem controle sobre sua ação, não sendo responsável pelo que faz, um doente incurável, poderíamos dizer, que “rouba” porque o furto faz parte de sua natureza de tradutor, enfim, um cleptomaníaco. Por se prestar à legitimação de interesses que ultrapassam as fronteiras das discussões sobre tradução, a inferioridade do tradutor e da tradução, inseparáveis, têm sido mantidas até a atualidade.

Mudando de direção, as teorias de caráter pós-estruturalista, dentre as quais se encontra a corrente pós-colonial, principiam a discussão em torno da tradução questionando a existência de significados completos e estanques em um texto. Um exemplo deste questionamento nos é apresentado por Jacques Derrida ao retomar o mito genesíaco da multiplicação das línguas. Ele concebe a Torre de Babel não apenas como representante da irredutibilidade da multiplicidade das línguas, conforme aparece no mito bíblico, mas também da impossibilidade de se completar, totalizar, uma construção. Assim, a multiplicidade de idiomas limitaria a “verdadeira tradução” e a possibilidade de uma interpretação única e transparente. Nesse contexto, Babel não seria apenas um nome próprio, mas também uma metáfora, uma palavra com múltiplos significados, entre os quais confusão – das línguas e dos arquitetos diante da impossibilidade de completude de sua obra. Também significaria o nome de Deus, o Deus Pai, “o pai da cidade chamada confusão” (Derrida, 1985, p. 211), onde a compreensão não é possível. Logo, conclui ele, Babel é o nome da origem da multiplicidade de línguas, a origem da necessidade de representação, das metáforas, do mito, a origem “da tradução inadequada que forneça o que esta multiplicidade nos nega” (ibid, p. 209).

Nesse contexto, interessa a Derrida discutir a questão da tradução considerando-a não só como um caminho de mão-dupla – a tradução de um texto de uma língua de partida para uma língua de chegada e vice-versa –, como até então haviam feito as teorias de caráter essencialista, mas, sobretudo, como um ato de leitura/interpretação diante da multiplicidade de sentidos imbricados em um texto e constituídos pelo leitor/intérprete. Assim, a tarefa impossível atribuída ao tradutor pelas correntes essencialistas – restituir, na tradução, o sentido do original que ele mesmo, tradutor, roubou, induzido pelo ato tradutório – cede lugar à tarefa de manter vivo o texto, garantir-lhe sobrevida, por meio da tradução, de onde se pode concluir, como faz Derrida, que o tradutor não é um endividado para com o original, ao qual deve submissão, mas o responsável por sua existência (cf. Derrida, 1985, p. 223) na medida em que a imortalidade, ou, em suas palavras, sobrevida, do texto vincula-se à possibilidade de tradução, transformação – em oposição a reprodução, cópia, que seriam a mortificação do texto. O texto existe e continua existindo porque pode ser traduzido, transformado. Daí Derrida afirmar que “O original se dá ao se modificar” (ibid, p. 226). Traduzir, então, revela-se como um processo de modificação, do qual depende a subsistência do original, sendo a tarefa do tradutor manter vivo o texto, dar-lhe sobrevida, por meio da transformação que a tradução opera sobre ele.

Aprofundando sua análise, Derrida afirma que a finalidade da tradução não é transportar significado, mas demonstrar a sua própria possibilidade – a possibilidade de se traduzir. Assim, o significado, o que uma frase quer dizer, continua dependendo do leitor, não no sentido de decodificador, mas como co-criador e co-produtor de sentido e significado na media em que o ato de leitura é um ato de produção/interpretação. Note-se, porém, que o tradutor é, também ele, um leitor que, enquanto escritor do texto de chagada, não tem autonomia sobre os significados do texto e nem pode impor ao leitor um significado por excelência – da mesma forma que o escritor do texto de partida também não tem autonomia sobre os significados nem pode impor ao leitor um significado por excelência.

Partindo de uma redefinição de tradução – “uma atividade altamente manipulativa que invoca os diversos estágios envolvidos no processo de transferência de uma língua e cultura para outra e carregada de intenções, raramente, ou talvez nunca, envolvendo uma relação igualitária entre textos, autores e sistemas” –, Susan Bassnett e Harish Trivedi (1999, p. 3) mostram que a concepção da tradução como inferior ao “original” é um fenômeno datado do século XVI, coincidindo, não por acaso, com o início da colonização das Américas e da expansão colonial (cf. 1999, p. 2). A supervalorização do original em detrimento da tradução decorreria, pois, do interesse de se enaltecer a matriz, metáfora da metrópole – a Europa –, cabendo à tradução metaforizar a cópia, por natureza, imperfeita, a colônia – Américas, África e Ásia.

Após tal observação, percebemos que as teorias e metáforas de tradução não se circunscrevem apenas no âmbito das Letras, desenrolando-se em um contexto de disputa política e econômica dominado pela visão eurocêntrica, à qual interessa destituir do (ex)colonizado a autonomia, a capacidade de enxergar com os próprios olhos, de ler/interpretar a partir de sua própria perspectiva – diferente daquela que tem sido preconizada como única matriz da verdade absoluta, do significado único, do sentido literal e essencial.

Como o reconhecimento de que nenhum valor é absoluto, único, imutável e inquestionável não se prestaria aos interesses imperialistas, a concepção da verdade/realidade como fruto da leitura/interpretação só poderia se manifestar em um país periférico e em uma época bastante remota daquela em que teve início a expansão colonial. Uma nova metáfora de tradutor também. Assim, é no conto O intérprete de males, da indiana Jhumpa Lahiri, escrito no fim da década de 90, que encontramos o Sr. Kapasi, um homem de meia-idade que trabalha como tradutor/intérprete em um consultório médico. Autodidata, estudara línguas à noite, após o trabalho. Fala inglês, francês, russo, português, italiano, hindi, bengali e orissi, além de guzerate, que aprendera com o pai. Começou a trabalhar como tradutor quando seu filho mais velho faleceu, para custear o enterro. Há muitos guzerates na região onde vive e poucos conhecem seu dialeto; por não compreendê-los, o médico local depende de seus serviços. Kapasi não se sente especial pelos seus conhecimentos e também não se orgulha do que faz. A esposa, por sua vez, despreza-o, trata-o como “ajudante de médico”. Ele se ressente, mas justifica-a, dizendo que talvez sua ocupação lhe traga a lembrança da morte do filho.

 Ele também ganha algum dinheiro como guia de turismo às sextas e sábados e é no exercício dessa função que encontra o Sr. e a Sra. Das, jovem casal indiano, rico e indiferente um ao outro e aos três filhos. Portam-se e se vestem como estadunidenses; são indianos nascidos e criados no EUA.

Ao saber de sua ocupação principal, a Sra. Das demonstra interesse, acha-a romântica e quer conhecer os detalhes, destacando sua relevância, já que a vida de muitos pacientes dele dependia. Até então, o Sr. Kapasi nunca pensara na importância de “interpretar” os males dos pacientes; quando jovem, sonhara trabalhar com diplomatas e autoridades, “resolvendo conflitos entre pessoas e nações” (p. 66), mas a Sra. Das destacava o desafio intelectual de sua atividade.

No restaurante, ela o convida para se sentar com eles à mesa. Lisonjeado, aceita. O marido tirou fotos e ela pediu seu endereço, para enviá-las. O Sr. Kapasi começou, então, a sonhar com cartas perguntando sobre seu trabalho, querendo saber de mais casos, elogiando seu desempenho; aos poucos ela falaria de sua infelicidade no casamento; ele faria o mesmo; viriam a ser amigos. Ele lhe deu seu endereço. À tarde continuaram visitando a região; ele ansiava por estarem a sós e terem liberdade para conversar um pouco mais. Quando têm a oportunidade, ela diz que deseja lhe contar um segredo, mas sua ilusão se desfaz diante da revelação de que traíra seu marido e tivera um filho. Contara-lhe por causa de sua qualificação, explica a jovem senhora, e esperava sua opinião; esperava que ele interpretasse/traduzisse seu segredo, o significado de o ter revelado, a angústia que sentira por guardá-lo durante oito anos. O Sr. Kapasi se sente insultado por ela querer sua interpretação para algo “tão vulgar”. Mais tarde, refeita da raiva que sentira pela recusa do Sr. Kapasi de interpretar o seu mal, ela tira a escova de cabelos da bolsa e nem percebe que o endereço do intérprete é levado pelo vento. Apenas ele o vê. Não havia mais sonhos, mas muitas vidas continuavam dependendo de sua interpretação.

Como se pode perceber, esse segundo personagem, pelo modo como desempenha suas tarefas e pela complexidade de seu caráter, presta-se mais como metáfora das concepções de tradução de pendor pós-estruturalista que o tradutor cleptomaníaco, pois Kapassi, embora tímido e a espera de um reconhecimento que parece nunca chegar, assume seu papel de produtor de sentido, representando o tradutor-autor – um autônomo (não autômato) cujo trabalho evidencia o processo de tradução como transmissão e deslocamento de sentidos, nunca repetição.

 

Referências

ARROJO, Rosemary. Writing, interpreting, and the power struggle for the control over   meaning – Exemplary scenes from Kafka, Borges, and Kosztolányi. In: EST Congress, 1998, Granada, Espanha.

BARROSO, Ivo (org.). Introdução. In: “O Corvo” e suas Traduções. São Paulo: Lacerda Ed., 1998. P.13-24.

BASSNET, Susan e TRIVEDI, Harish. Of colonies, cannibals and vernaculars. In: BASSNETT, Susan e TRIVERDI, Harish (ed.). Post-colonial translation. Londres e Nova York: Routledge, 1999. P.01-18.

CATFORD, J. C. Uma teoria lingüística da tradução (trad. Centro de especialização de Tradutores da PUC). São Paulo: Cultrix, 1980.

CONY, Carlos Heitor. “O Corvo” e seus leitores. In: BARROSO, Ivo (org.). “O Corvo” e suas Traduções. São Paulo: Lacerda Ed., 1998. P.9-11.

DERRIDA, Jacques. Des Tours de Babel. In: GRAHAN, Joseph F. (ed.). Difference in Translation. Nova York: Cornell University, 1985. P.209-248.

KOSZTOLÁNYI, Dezsö. O tradutor cleptomaníaco. In: O tradutor cleptomaníaco (trad. Ladislao Szabo). Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. P.07-10.

LAHIRI, Jhumpa. O intérprete de males (trad. Henriques Britto). São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIDA, Eugene A. Toward a science of translating: with special reference to principles and procedures involved in Bible translation. Leiden: Brill, 1964.

VÁZQUES-AYORA, Gerardo. Introducción a la traduciologia: curso básico de traducción. Washington: Georgetown University, 1977.

VINAY, Jean-Paul e DARBELNET, Jean. Stylistique comparée du français et de l’anglais: Méthode de traduction. Paris: Didier, 1981.


Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 


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