Dra. Vanete Santana-Dezmann
Personagem do
úngaro Dezsö Kosztolányi, Gallus, o tradutor cleptomaníaco, materializa
metaforicamente o comportamento atribuído ao tradutor pelas teorias de tradução
de caráter essencialista, conforme apontou Rosemary Arrojo em seu artigo
“Writing, interpreting, and the power struggle for the control over meaning –
exemplary scenes from Kafka, Borges and Kosztolányi”. Nessa concepção, o tradutor é visto como um
mero transportador de significados incapaz de zelar pela mercadoria que
transporta, perdendo-a no percurso, ou, pior, roubando-a. Daí a atenção de uma
crítica invariavelmente preocupada com as infidelidades e que chega sempre à
conclusão de que a tradução nunca vai ser tão boa quanto o original. Vejamos
como exemplo o que diz Maurício Santana Dias sobre a tradução de A Divina
Comédia feita por Ítalo Eugenio Mauro ao longo de nove anos:
... toda nova tradução
integral do poema de Dante é, em certa medida, uma tarefa de antemão votada ao
fracasso. Isso porque é impossível sustentar, sem deixar esmorecer, a
excelência e a intensidade desse poema de cem cantos. Só um outro Dante para conseguir isso – talvez nem ele, já que
estaria tolhido pela necessidade de conformar-se à letra de um outro poeta.
(1999, p. 9, grifo nosso).
Outro exemplo pode ser encontrado
nas palavras de Ivo Barroso, também tradutor:
é forçoso reconhecer
que, comparadas ao original, elas [as traduções] nos fazem pensar em ectoplasmas
poéticos aos quais faltasse um corpo, uma forma física que lhes desse voz,
o viso e o vulto da criatura viva: a essência (ou alma) da narrativa ali está,
mas lhe falta a sonoridade da orquestração que lhe daria corpo, que completaria
a dualidade indissolúvel. [e sentencia:] Evidentemente que nenhuma tradução
consegue preservar todos os elementos do original (1998, p. 14-16, grifo
nosso).
De
fato, se observarmos as definições de tradução elaboradas por teóricos como
Eugene Nida, Gerardo Vázquez-Ayora, Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet e J. C.
Catford, nos quais a crítica parece se apoiar, constataremos que o denominador
comum a todos é a necessidade que consideram inerente à “boa tradução” de se
preservar o significado do original ou essência do texto de partida,
sendo essa a característica básica dos teóricos denominados essencialistas.
Do
reconhecimento do texto de partida como modelo a ser respeitado, decorrem as
concepções de tradução como um ato de submissão e do tradutor como um servo
compungido pelo dever de fidelidade ao “senhor texto original”. Como a
diferença é inerente à tradução, sempre é possível enxergá-la quando a tradução
é confrontada com o dito original. Por identificarem a diferença com a
perda, os teóricos e críticos de caráter essencialista concebem o ato
tradutório como um vício ou doença. O tradutor, por sua vez, é apresentado como
vítima desse vício, alguém que não tem controle sobre sua ação, não sendo
responsável pelo que faz, um doente incurável, poderíamos dizer, que “rouba”
porque o furto faz parte de sua natureza de tradutor, enfim, um cleptomaníaco.
Por se prestar à legitimação de interesses que ultrapassam as fronteiras das
discussões sobre tradução, a inferioridade do tradutor e da tradução,
inseparáveis, têm sido mantidas até a atualidade.
Mudando de
direção, as teorias de caráter pós-estruturalista, dentre as quais se encontra
a corrente pós-colonial, principiam a discussão em torno da tradução
questionando a existência de significados completos e estanques em um texto. Um
exemplo deste questionamento nos é apresentado por Jacques Derrida ao retomar o
mito genesíaco da multiplicação das línguas. Ele concebe a Torre de Babel não
apenas como representante da irredutibilidade da multiplicidade das línguas,
conforme aparece no mito bíblico, mas também da impossibilidade de se
completar, totalizar, uma construção. Assim, a multiplicidade de idiomas
limitaria a “verdadeira tradução” e a possibilidade de uma interpretação única
e transparente. Nesse contexto, Babel não seria apenas um nome próprio, mas
também uma metáfora, uma palavra com múltiplos significados, entre os quais
confusão – das línguas e dos arquitetos diante da impossibilidade de completude
de sua obra. Também significaria o nome de Deus, o Deus Pai, “o pai da cidade
chamada confusão” (Derrida, 1985, p. 211), onde a compreensão não é possível.
Logo, conclui ele, Babel é o nome da origem da multiplicidade de línguas, a
origem da necessidade de representação, das metáforas, do mito, a origem “da
tradução inadequada que forneça o que esta multiplicidade nos nega” (ibid, p.
209).
Nesse
contexto, interessa a Derrida discutir a questão da tradução considerando-a não
só como um caminho de mão-dupla – a tradução de um texto de uma língua de
partida para uma língua de chegada e vice-versa –, como até então haviam feito
as teorias de caráter essencialista, mas, sobretudo, como um ato de
leitura/interpretação diante da multiplicidade de sentidos imbricados em um
texto e constituídos pelo leitor/intérprete. Assim, a tarefa impossível
atribuída ao tradutor pelas correntes essencialistas – restituir, na tradução,
o sentido do original que ele mesmo, tradutor, roubou, induzido pelo ato
tradutório – cede lugar à tarefa de manter vivo o texto, garantir-lhe
sobrevida, por meio da tradução, de onde se pode concluir, como faz Derrida,
que o tradutor não é um endividado para com o original, ao qual deve
submissão, mas o responsável por sua existência (cf. Derrida, 1985, p. 223) na
medida em que a imortalidade, ou, em suas palavras, sobrevida, do texto
vincula-se à possibilidade de tradução, transformação – em oposição a
reprodução, cópia, que seriam a mortificação do texto. O texto existe e
continua existindo porque pode ser traduzido, transformado. Daí Derrida afirmar
que “O original se dá ao se modificar” (ibid, p. 226). Traduzir, então,
revela-se como um processo de modificação, do qual depende a subsistência do
original, sendo a tarefa do tradutor manter vivo o texto, dar-lhe sobrevida,
por meio da transformação que a tradução opera sobre ele.
Aprofundando
sua análise, Derrida afirma que a finalidade da tradução não é transportar
significado, mas demonstrar a sua própria possibilidade – a possibilidade de se
traduzir. Assim, o significado, o que uma frase quer dizer, continua dependendo
do leitor, não no sentido de decodificador, mas como co-criador e co-produtor
de sentido e significado na media em que o ato de leitura é um ato de
produção/interpretação. Note-se, porém, que o tradutor é, também ele, um leitor
que, enquanto escritor do texto de chagada, não tem autonomia sobre os
significados do texto e nem pode impor ao leitor um significado por excelência
– da mesma forma que o escritor do texto de partida também não tem autonomia
sobre os significados nem pode impor ao leitor um significado por excelência.
Partindo de
uma redefinição de tradução – “uma atividade altamente manipulativa que invoca
os diversos estágios envolvidos no processo de transferência de uma língua e
cultura para outra e carregada de intenções, raramente, ou talvez nunca,
envolvendo uma relação igualitária entre textos, autores e sistemas” –, Susan
Bassnett e Harish Trivedi (1999, p. 3) mostram que a concepção da tradução como
inferior ao “original” é um fenômeno datado do século XVI, coincidindo, não por
acaso, com o início da colonização das Américas e da expansão colonial (cf.
1999, p. 2). A supervalorização do original em detrimento da tradução
decorreria, pois, do interesse de se enaltecer a matriz, metáfora da metrópole
– a Europa –, cabendo à tradução metaforizar a cópia, por natureza, imperfeita,
a colônia – Américas, África e Ásia.
Após tal
observação, percebemos que as teorias e metáforas de tradução não se
circunscrevem apenas no âmbito das Letras, desenrolando-se em um contexto de
disputa política e econômica dominado pela visão eurocêntrica, à qual interessa
destituir do (ex)colonizado a autonomia, a capacidade de enxergar com os
próprios olhos, de ler/interpretar a partir de sua própria perspectiva –
diferente daquela que tem sido preconizada como única matriz da verdade
absoluta, do significado único, do sentido literal e essencial.
Como o
reconhecimento de que nenhum valor é absoluto, único, imutável e inquestionável
não se prestaria aos interesses imperialistas, a concepção da verdade/realidade
como fruto da leitura/interpretação só poderia se manifestar em um país
periférico e em uma época bastante remota daquela em que teve início a expansão
colonial. Uma nova metáfora de tradutor também. Assim, é no conto O
intérprete de males, da indiana Jhumpa Lahiri, escrito no fim da década de
90, que encontramos o Sr. Kapasi, um homem de meia-idade que trabalha como
tradutor/intérprete em um consultório médico. Autodidata, estudara línguas à
noite, após o trabalho. Fala inglês, francês, russo, português, italiano,
hindi, bengali e orissi, além de guzerate, que aprendera com o pai. Começou a
trabalhar como tradutor quando seu filho mais velho faleceu, para custear o
enterro. Há muitos guzerates na região onde vive e poucos conhecem seu dialeto;
por não compreendê-los, o médico local depende de seus serviços. Kapasi não se
sente especial pelos seus conhecimentos e também não se orgulha do que faz. A
esposa, por sua vez, despreza-o, trata-o como “ajudante de médico”. Ele se
ressente, mas justifica-a, dizendo que talvez sua ocupação lhe traga a
lembrança da morte do filho.
Ele também ganha algum dinheiro como guia de
turismo às sextas e sábados e é no exercício dessa função que encontra o Sr. e
a Sra. Das, jovem casal indiano, rico e indiferente um ao outro e aos três filhos.
Portam-se e se vestem como estadunidenses; são indianos nascidos e criados no
EUA.
Ao saber de
sua ocupação principal, a Sra. Das demonstra interesse, acha-a romântica e quer
conhecer os detalhes, destacando sua relevância, já que a vida de muitos pacientes
dele dependia. Até então, o Sr. Kapasi nunca pensara na importância de
“interpretar” os males dos pacientes; quando jovem, sonhara trabalhar com
diplomatas e autoridades, “resolvendo conflitos entre pessoas e nações” (p.
66), mas a Sra. Das destacava o desafio intelectual de sua atividade.
No
restaurante, ela o convida para se sentar com eles à mesa. Lisonjeado, aceita.
O marido tirou fotos e ela pediu seu endereço, para enviá-las. O Sr. Kapasi
começou, então, a sonhar com cartas perguntando sobre seu trabalho, querendo
saber de mais casos, elogiando seu desempenho; aos poucos ela falaria de sua
infelicidade no casamento; ele faria o mesmo; viriam a ser amigos. Ele lhe deu
seu endereço. À tarde continuaram visitando a região; ele ansiava por estarem a
sós e terem liberdade para conversar um pouco mais. Quando têm a oportunidade,
ela diz que deseja lhe contar um segredo, mas sua ilusão se desfaz diante da
revelação de que traíra seu marido e tivera um filho. Contara-lhe por causa de
sua qualificação, explica a jovem senhora, e esperava sua opinião; esperava que
ele interpretasse/traduzisse seu segredo, o significado de o ter revelado, a
angústia que sentira por guardá-lo durante oito anos. O Sr. Kapasi se sente
insultado por ela querer sua interpretação para algo “tão vulgar”. Mais tarde,
refeita da raiva que sentira pela recusa do Sr. Kapasi de interpretar o seu
mal, ela tira a escova de cabelos da bolsa e nem percebe que o endereço do
intérprete é levado pelo vento. Apenas ele o vê. Não havia mais sonhos, mas
muitas vidas continuavam dependendo de sua interpretação.
Como se pode perceber, esse segundo personagem,
pelo modo como desempenha suas tarefas e pela complexidade de seu caráter,
presta-se mais como metáfora das concepções de tradução de pendor pós-estruturalista
que o tradutor cleptomaníaco, pois Kapassi, embora tímido e a espera de um
reconhecimento que parece nunca chegar, assume seu papel de produtor de
sentido, representando o tradutor-autor – um autônomo (não autômato) cujo
trabalho evidencia o processo de tradução como transmissão e deslocamento de
sentidos, nunca repetição.
Referências
ARROJO,
Rosemary. Writing,
interpreting, and the power struggle for the control over meaning – Exemplary scenes from Kafka,
Borges, and Kosztolányi. In: EST Congress,
1998, Granada, Espanha.
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Traduções. São Paulo: Lacerda Ed., 1998. P.13-24.
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cannibals and vernaculars. In: BASSNETT, Susan e TRIVERDI, Harish (ed.).
Post-colonial translation. Londres e Nova York: Routledge, 1999. P.01-18.
CATFORD,
J. C. Uma teoria lingüística da tradução (trad. Centro de especialização de
Tradutores da PUC). São Paulo: Cultrix, 1980.
CONY,
Carlos Heitor. “O Corvo” e seus leitores. In: BARROSO, Ivo (org.). “O Corvo” e
suas Traduções. São Paulo: Lacerda Ed., 1998. P.9-11.
DERRIDA,
Jacques. Des Tours de Babel. In: GRAHAN, Joseph F. (ed.). Difference in
Translation. Nova York: Cornell University, 1985. P.209-248.
KOSZTOLÁNYI,
Dezsö. O tradutor cleptomaníaco. In: O tradutor cleptomaníaco (trad. Ladislao
Szabo). Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. P.07-10.
LAHIRI, Jhumpa. O
intérprete de males (trad. Henriques Britto). São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
NIDA,
Eugene A. Toward a science of translating: with special reference to principles and procedures
involved in Bible translation. Leiden: Brill, 1964.
VÁZQUES-AYORA,
Gerardo. Introducción a la traduciologia: curso básico de traducción. Washington: Georgetown University,
1977.
VINAY, Jean-Paul e DARBELNET, Jean. Stylistique comparée du français et de l’anglais: Méthode de traduction. Paris: Didier, 1981.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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