Terça, 05 de janeiro de 2021
Observatório da Imprensa - ISSN 1519-7670 - Ano 21 - nº 1119
Dra.Vanete Santana-Dezmann
“O frescor de boas-vindas de
lápides não lapidadas; aquela que, na ponta dos pés, ela escolhera para
encostar, os joelhos tão abertos como qualquer túmulo. Rosa como uma unha e
polvilhado de pontos cintilantes. Dez minutos, ele disse. Você tem dez minutos
e eu faço grátis.
Dez minutos para cinco letras.
Com mais dez ela podia ter conseguido "Bem" também? Não tinha pensado
em perguntar a ele e ainda a incomodava aquilo ter sido possível - que em troca
de vinte minutos, meia hora digamos, ela podia ter conseguido a coisa toda,
todas as palavras que tinha ouvido o pregador dizer no enterro (e tudo o que
havia para dizer, com certeza) entalhado na lápide: Bem-Amada. Mas o que ela
havia conseguido, que escolhera, era a única palavra que importava. Ela achou
que podia bastar, copular entre as lápides com o entalhador, o filho dele,
menino, olhando, tão velho o ódio em seu rosto; bem novo o apetite nesse rosto.”
(Amada, Toni Morrison)
Imaginem-se lendo uma história em que
uma menininha negra em fuga tem seu pescoço serrado pela própria mãe, também
negra, que é detida prestes a esmagar a cabeça de outro de seus quatro filhos,
aos quais pretendia matar. A história se revela tão interessante que vai parar
na tela de cinemas de todo o mundo, onde vocês podem assisti-la, estarrecidos, e
adentra o século XXI sendo dramatizada em ópera.
Imaginem-se no mesmo cinema
assistindo a outra história em que vários homens negros que estão sendo transportados
da América Central para a América do Norte são tratados de modo desumano tanto
durante a viagem, quando se revoltam e atacam aqueles que os raptaram, quanto quando
desembarcam e são levados a julgamento pela insurreição. Ao longo do filme, os
homens são vítimas de variados tipos de castigo psicológico – xingamentos e
ofensas, por exemplo – e físico – chibatadas desferidas contra o dorso nu do
castigado cujas mãos se encontram amarradas são frequentes entre as demais
cenas de tortura.
De volta à literatura, imaginem-se lendo
a história de uma criança filha de uma ex-escrava que sofre continuamente todos os
tipos de maus-tratos que a dona da casa em que ela vive pode lhe impor, a despeito das leis que
deveriam proteger esta criança.
Quais deveriam ser seus sentimentos
diante de cada uma dessas histórias? Qual o objetivo dos autores desses livros
e diretores desses filmes e ópera? Levar vocês a torcer pelos agressores? Levar
vocês a agir com a mesma violência e veemência com que age aquele que segura a
chibata; com a mesma falta de sensibilidade com que agem aqueles que condenam a
mãe à prisão; com a mesma gratuita maldade com que age aquela que enfia um ovo
quente na boca da criança e a impede de abri-la, como penalidade por um pequeno
deslize?
A primeira destas histórias é a base para o romance Beloved (publicado no Brasil pela Cia das Letras como Amada), pelo qual Toni Morrison recebeu o prêmio Pulitzer de literatura de 1987, vindo a ser contemplada pelo Nobel de literatura de 1993 pelo conjunto de sua obra. Adaptado para o cinema, com direção de Jonathan Demme (que também dirigiu O Silêncio dos Inocentes) e com Oprah Winfrey interpretando a mãe infanticida, a jovem escrava Sethe, Bem-Amada (título que o filme recebeu no Brasil) chocou muitos espectadores mundo afora: como pode uma mãe matar a própria filha, praticamente um bebê ainda? Os espectadores teriam ficado ainda mais chocados se soubessem que a história se baseia em um fato real e não isolado, conforme esclarece Morrison no prefácio ao livro:
Um recorte de jornal do The Black Book [O livro negro] resumia a
história de Margaret Garner, uma jovem que, depois de escapar da escravidão,
foi presa por matar um de seus filhos (e tentar matar os outros), para impedir
que fossem devolvidos à plantação do senhor. Ela se transformou numa cause
célèbre da luta contra as leis dos Escravos Fugitivos, que determinava que os
que escapavam fossem devolvidos a seus donos. O equilíbrio e a ausência de
arrependimento dela chamaram a atenção dos abolicionistas, assim como dos
jornais. Ela era, sem dúvida, determinada e, a julgar por seus comentários,
tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que,
para ela, era a necessidade de liberdade. (Morrison, 2007, p. XVII.)
Ainda que apresentado de modo implícito,
o fato de que, longe de ser uma infanticida sanguinária, Sethe tem um amor tão
profundo por seus filhos que prefere matá-los a deixá-los submetidos à
violência da escravidão se torna tão evidente quanto o fato de que sua
história, a história real da jovem Margaret Garner, fortaleceu a luta pela
abolição da escravatura nos EUA à beira da Guerra Civil. “A visit to a slave
mother who killed her child” (“Uma visita a uma mãe escrava que matou sua
criança”, em tradução livre) é o título do artigo de jornal que relata a ocorrência registrada por
volta de 1855. Margaret tentou fugir da escravidão com seus quatro filhos. Diante da iminente captura, serrou o pescoço da filha mais velha,
ainda uma criança, e estava prestes a esmagar a cabeça do menino contra uma parede quando foi
alcançada. Foi condenada à prisão por assassinato. À época, em conversas com
jornalistas e pastores, ela teria se revelado bastante lúcida e afirmado
repetidas vezes que seus filhos não iriam viver como ela vivera até então, ou
seja, não viveriam como escravos (cf. Morrison, 1987, p.17). Quando terminou de
cumprir a pena, Abraham Lincoln já havia abolido a escravatura, assim, ao deixar
a prisão, Margaret passou a viver em liberdade.
A segunda história apresentada inicialmente é a base de Amistad, filme de 1997 de Steven Spielberg que também reconta uma história real. A trama se centra na tenuidade da linha que separava criminalidade de inocência no caso daqueles homens que, ainda em alto-mar, insurgiram contra a tripulação do navio que os transportava – razão pela qual foram levados a julgamento quando desembarcaram em terras norte-americanas. Ao tribunal cabia decidir se os progenitores dos réus eram moradores da América Central e, portanto, tinham perante aquele tribunal o estatuto legal de escravos ou se eram moradores da África e, portanto, tinham o estatuto legal de homens livres uma vez que o comércio internacional de escravos havia sido proibido em 1839, ano em que se dá o fato.
No primeiro caso, de acordo com as
leis do tribunal que os julgava, os réus seriam escravos e, portanto, culpados.
No segundo, seriam homens livres agindo em legítima defesa – donde se conclui
que as pessoas às quais o status de
escravo havia sido imposto não tinham o direito à legítima defesa.
Um dos advogados que os defende baseia sua argumentação no direito de propriedade, como se os réus
fossem objetos.
A terceira das histórias
apresentadas acima é um brevíssimo resumo de Negrinha,
conto de Monteiro Lobato (1882-1948) publicado em 1920, 32 anos após a abolição
da escravatura e 31 anos após a adoção do sistema republicano – portanto, ainda
durante o período de transição para o sistema de trabalho assalariado, visto
que muitas das pessoas escravizadas, sem terem para onde ir após a libertação,
permanecem sob a guarda de seus antigos “proprietários”, trabalhando em troca
de moradia e alimentação. Negrinha é filha de uma dessas ex-escravas que a dona
da casa que a abriga afirma cuidar por caridade. “Saco-de-pancadas” de todos
da casa, sobretudo da “boa e católica senhora”, cumpridora de suas obrigações
para com Deus, Negrinha nem nome tinha. Era tratada pelos mais pejorativos
apelidos e castigada por tudo e por nada. De seu primeiro e curto contato com
uma menina inanimada – uma boneca -, ela se descobre gente. Enquanto as donas
da boneca, sobrinhas da dona da casa, lá passavam férias, Negrinha foi liberada
para brincar com as meninas, convertendo-se em um brinquedo – bem mais
instigante do que a boneca – com o qual elas se divertiam. Quando as meninas
partem, levando consigo seu contraponto e a pouca liberdade de que desfrutara,
Negrinha se deixa morrer para não retornar à condição de objeto de descarga dos
desgostos alheios.
Se o roteiro de Amistad, assinado por David Franzoni, convenceu Spielberg e toda
aquela quantidade de grandes atores negros de Hollywood de que essa história de
violência e injustiça – porquanto dependente de uma questão de formalidade,
como é a jurisprudência, que muda de um lugar para outro, de uma época para
outra – valia a pena ser contada como forma de sensibilizar corações e
despertar mentes do final do século XX para a injustiça da escravidão e do
subjacente racismo; se o infanticídio praticado por Margaret serviu para fortalecer
a luta contra a escravidão e o racismo a ela subjacente no século retrasado, convencendo
da atrocidade que é escravizar seres humanos e levando a ficção baseada em sua
história a se converter em um libelo contra o racismo no final do século XX,
por que o conto de Lobato se prestaria a converter seus leitores de todas as
épocas em racistas, funcionando como um libelo ao racismo e se tornando, em
pleno século XXI, quando a mentalidade deveria estar mais esclarecida e aberta,
digno de perseguição?
Se vocês não conseguem se comover com
a dor de Negrinha diante dos sofrimentos a ela impostos na detalhada descrição de Lobato; se vocês não conseguem enxergar o caráter frágil e humano que Lobato
imprime a sua personagem de 15 kg; se vocês não conseguem perceber no conto de
Lobato uma contundente, porquanto implícita, condenação à escravidão e ao
racismo e reconhecer o vanguardismo do escritor brasileiro ao levar para a
ficção há exatamente um século a sofrida história de tantas “Negrinhas”
espalhadas pelos campos de onde quer que a escravidão tenha chegado nos tempos
modernos, exijam que a Academia Sueca tome do volta o Nobel de Morrison, a única
mulher negra a receber este prêmio até hoje, e que a Universidade de Colúmbia lhe tome
o Pulitzer. Por fim, exijam que Spielberg, Morgan Freeman e todos os demais
participantes de Amistad se retratem
publicamente por apologia à escravidão e ao racismo.
Referências bibliográficas
MORRISON, Toni. Amada (Trad.: José Rubens Siqueira). São Paulo, Cia das Letras, 2007.
_____. The New York Times. August 26, 1987. Section
C, Page 17. Disponível em < https://www.nytimes.com/1987/08/26/books/toni-morrison-in-her-new-novel-defends-women.html
>. Consultado em 22 de dezembro de 2020.
Vanete Santana-Dezmann é responsável pelo projeto "Lobato em Tradução", desenvolvido na Johannes Gutenberg Universität com financiamento do Gutenberg Lehrkolleg. No momento, ambos organizam a edição de um livro contendo a tradução trilíngue (inglês, alemão e espanhol) de Negrinha, cuja publicação está prevista para janeiro na Alemanha. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
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