Dra. Vanete Santana-Dezmann
Ilustração de Camila Raposa retirada do livro Emília 100
No
natal de 1920, Monteiro Lobato publicou um singelo livrinho intitulado A Menina do Narizinho Arrebitado, cuja
principal personagem, Lúcia, é chamada pelo carinhoso apelido “Narizinho”. No
sítio da avó, com sua boneca de pano embaixo do braço e seu primo Pedrinho,
acompanhado por seu boneco de sabugo de milho, têm início suas aventuras. Onze
anos mais tarde, este se tornaria o primeiro capítulo de Reinações de Narizinho, livro em que sua boneca Emília começa a
falar após engolir as pílulas do Doutor Caramujo, médico do Reino das
Águas Claras, o palácio do Príncipe Escamado que fica no riacho que passa no
fundo do sítio. Lobato continuaria a acrescentar aventuras à vida das
personagens do Sítio do Picapau Amarelo
até 1947, quando a série se completa, com 23 volumes.
No
próximo natal, a contraditória boneca completará cem anos. Feita por Tia
Nastácia com retalhos de tecido e botões no lugar dos olhos, foi recheada com
macelas, flores que têm propriedades calmantes, razão pela qual são usadas na
região Sul do Brasil para se confeccionarem travesseirinhos para bebês. Podemos
imaginar o amor com que as bondosas mãos a costurou, ponto por ponto. No
entanto, desde que abriu a boca pela primeira vez, Emília passou a “falar pelos
cotovelos”, afobada, apressada, nervosa, por vezes, até irritante.
A
despeito de toda censura, que levou vários exemplares a alimentar fogueiras
Brasil a fora,– sobretudo no Nordeste –, foi por meio das aventuras da turma do
Sítio que muitos brasileiros aprenderam o que seria literatura infantil. –
antes de Lobato, praticamente inexistente em português tropical. Também foi por
meio de suas aventuras que gerações de brasileiros, pequeninos e crescidinhos,
passaram a apreciar a leitura.
Preocupado
com a instrução de seu povo e com a formação do mercado editorial no Brasil,
Lobato conciliava sua habilidade de homem de negócios com a de agente cultural.
Seus livros, publicados por editora própria, eram enviados aos mais longínquos
arraiais acompanhados por uma cartinha que os apresentava aos donos de vendas e
armazéns de secos e molhados, propondo-lhes a venda em consignação:
Vossa Senhoria tem o seu negócio
montado, e quanto mais coisas vender, maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada “livro”? V. S. não
precisa inteirar-se do que essa coisa
é. Trata-se de um artigo comercial como qualquer outro, batata, querosene ou
bacalhau. E como V. S. receberá esse
artigo em consignação, não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais “livros”, terá uma comissão de
30%; se não vendê-los, no-los devolverá pelo Correio, com o porte por nossa
conta. Responda se topa ou não topa. (circular dirigida a possíveis
revendedores, Lobato, 1959, p. 190,)
Em
uma tarde de domingo de 1977, reunida com minha família em frente à TV, vejo
uma menina como eu brincando com uma boneca de pano que se comportava como
gente de verdade. Em seguida, aparece um menino que poderia ser meu irmão, uma
avó que se parecia com a mãe de meu pai e tantas outras personagens alegres e
divertidas. Quando a voz grave anunciou a estreia, eu nem entendi que se
tratava de uma série. Na verdade, eu nem sabia o que era série, em meus poucos
anos. Anunciei logo, em alto e bom tom: “Vou assistir!”. Implicitamente, a
partir de então, estava a TV reservada para mim na tarde do dia seguinte. Olhei
sorrateiramente para um e outro. Nenhuma objeção. Aquele não era um horário
concorrido. Que alívio!
Lembro-me
que cada episódio era reprisado na manhã do dia seguinte. Assim, mesmo quando
passei a estudar à tarde, pude continuar sonhando com o Príncipe Escamado, como
a Narizinho; desbravando a mata, tão parecida com a do sítio da minha avó, com
o Pedrinho; aprendendo coisas do arco da velha com as histórias de Dona Benta e
com as explicações científicas do Visconde de Sabugosa; adquirindo mais
sabedoria popular com Tia Nastácia e Tio Barnabé; rindo com o Zé Carneiro e
Malazarte; assustando-me com a Cuca e o Saci e, às vezes, irritando-me com a
espevitada Emília.
Nestes meus primeiros anos de vida, em casa só
havia uma enciclopédia e um dicionário em vários volumes. Nas escolas em que
estudei, não havia biblioteca. Meu primeiro contato com Lobato foi por meio de
um excerto de uma história da Narizinho no livro de Português, na antiga
terceira série do Primário. Fiquei fascinada. Eu adorava as estórias (como
escrevíamos na época) do livro didático porque, até então, meu contato com
textos passava por temas como corrida espacial, teorias sobre a origem do
universo e mitologia – meus temas preferidos na enciclopédia e dicionário. O
gênero narrativo escrito era novidade para mim, embora estivesse acostumada a
criar histórias em minha mente e cadernos.
Poucos
anos depois, quando a série chegou ao fim, deixou um vazio e certa tristeza, mas
o lado bom de ter crescido um pouquinho era poder ir sozinha ao centro da
cidade. Era o início dos anos oitenta e Campinas ainda era um lugar calmo para
se viver. Minha primeira excursão ao centro foi para encontrar minha irmã e
pegar uns livros que eu precisava para a escola. O ônibus passou em frente à
Biblioteca Municipal. Na semana seguinte, convenci minha mãe a me deixar ir à
biblioteca fazer uma pesquisa de geografia. A enciclopédia de casa estava
desatualizada, argumentei. Na biblioteca, descobri um universo. Retornei lá na semana
seguinte com o comprovante de endereço, fiz minha carteirinha e voltei para
casa com uma sacola de livros. “O Grupo”, de Mary McCarthy (porque gostei da
capa e da orelha), “Ana Karenina”, de Leon Tolstoi (amei a capa e me
interessava pela Rússia), “Eram os Deuses Astronautas”, de Erich von Däniken
(imprescindível para uma menina fascinada pelo universo!) e as “Reinações de
Narizinho” (para matar as saudades de meus companheiros de fim de tarde). Com
meu gosto eclético, continuei lendo Lobato junto com Darwin, Huxley, Poe,
Orwell...
Na
década de 90, pelas mãos de ninguém menos que Marisa Lajolo, voltei a encontrar
as personagens do Sítio e Lobato, então mais completo, escrevendo para adultos.
Nos
anos 2000, vi com emoção sobrinhos meus acompanhando a nova versão do Sítio do Picapau Amarelo para a TV. Foi
nesta época que deixei o tema inicial de minha pesquisa de doutorado para me
dedicar a analisar como Lobato adaptou para a perspectiva dos índios tupinambás
a história de Hans Staden, um jovenzinho de vinte e poucos anos que esteve em
terras que futuramente fariam parte do território brasileiro lá pelos idos de
1556 e depois publicou um livro sobre isso, pousando-se de herói. Mas esta já é
outra história, que contarei qualquer dia desses.
O que eu quero
contar hoje são duas novidades:
Primeira delas: em breve
a Skript Editora vai lançar uma edição comemorativa dos 100 anos de Emília, com
várias releituras da boneca falante feitas por mais de 20 autoras de histórias
em quadrinhos e coordenada pela premiada Carol Pimentel. A mim coube a honra de
assinar a introdução.
Segunda: meu projeto
para traduzir Reinações de Narizinho
para o alemão está entre os oito melhores projetos inovadores em ensino selecionados
pelo Colegiado dos Professores da Universidade de Mainz “Johannes Gutenberg”. Isso
significa que a Emília e todas as personagens do Sítio, em breve, vão falar
pelos cotovelos também em alemão. Os alunos do curso de Tradução, sob a
supervisão do Prof. Marcel Vejmelka e minha, estão cuidando para que isso
aconteça e o Departamento de Língua Portuguesa da Faculdade de Tradução, Linguística e Estudos Culturais está nos dando todo o apoio necessário.
Bibliografia
LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas. São Paulo:
Brasiliense, 1959.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.
Fantástico esse projeto. Lobato faz parte do nosso imaginário e merece ser conhecido em lugares onde a cultura literária recebe mais carinho. Parabéns. Vou continuar ansioso para ver o resultado e te desejo muito sucesso. Bjs André
ResponderExcluirMuito obrigada, querido André! Beijinhos.
ExcluirMuito legal ficar sabendo de projetos com Monteiro Lobato, dentro e fora do Brasil. Muito sucesso com todos! Ana
ResponderExcluirObrigada, Ana!!! E obrigada também por contribuir com esta história! Beijinhos.
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