27.7.20

Lobato e eu e muitas histórias...



Dra. Vanete Santana-Dezmann

Ilustração de Camila Raposa retirada do livro Emília 100


No natal de 1920, Monteiro Lobato publicou um singelo livrinho intitulado A Menina do Narizinho Arrebitado, cuja principal personagem, Lúcia, é chamada pelo carinhoso apelido “Narizinho”. No sítio da avó, com sua boneca de pano embaixo do braço e seu primo Pedrinho, acompanhado por seu boneco de sabugo de milho, têm início suas aventuras. Onze anos mais tarde, este se tornaria o primeiro capítulo de Reinações de Narizinho, livro em que sua boneca Emília começa a falar após engolir as pílulas do Doutor Caramujo, médico do Reino das Águas Claras, o palácio do Príncipe Escamado que fica no riacho que passa no fundo do sítio. Lobato continuaria a acrescentar aventuras à vida das personagens do Sítio do Picapau Amarelo até 1947, quando a série se completa, com 23 volumes.
No próximo natal, a contraditória boneca completará cem anos. Feita por Tia Nastácia com retalhos de tecido e botões no lugar dos olhos, foi recheada com macelas, flores que têm propriedades calmantes, razão pela qual são usadas na região Sul do Brasil para se confeccionarem travesseirinhos para bebês. Podemos imaginar o amor com que as bondosas mãos a costurou, ponto por ponto. No entanto, desde que abriu a boca pela primeira vez, Emília passou a “falar pelos cotovelos”, afobada, apressada, nervosa, por vezes, até irritante.
A despeito de toda censura, que levou vários exemplares a alimentar fogueiras Brasil a fora,– sobretudo no Nordeste –, foi por meio das aventuras da turma do Sítio que muitos brasileiros aprenderam o que seria literatura infantil. – antes de Lobato, praticamente inexistente em português tropical. Também foi por meio de suas aventuras que gerações de brasileiros, pequeninos e crescidinhos, passaram a apreciar a leitura.
Preocupado com a instrução de seu povo e com a formação do mercado editorial no Brasil, Lobato conciliava sua habilidade de homem de negócios com a de agente cultural. Seus livros, publicados por editora própria, eram enviados aos mais longínquos arraiais acompanhados por uma cartinha que os apresentava aos donos de vendas e armazéns de secos e molhados, propondo-lhes a venda em consignação:

Vossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coisas vender, maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada “livro”? V. S. não precisa inteirar-se do que essa coisa é. Trata-se de um artigo comercial como qualquer outro, batata, querosene ou bacalhau. E como V. S. receberá esse artigo em consignação, não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais “livros”, terá uma comissão de 30%; se não vendê-los, no-los devolverá pelo Correio, com o porte por nossa conta. Responda se topa ou não topa. (circular dirigida a possíveis revendedores, Lobato, 1959, p. 190,)

Em uma tarde de domingo de 1977, reunida com minha família em frente à TV, vejo uma menina como eu brincando com uma boneca de pano que se comportava como gente de verdade. Em seguida, aparece um menino que poderia ser meu irmão, uma avó que se parecia com a mãe de meu pai e tantas outras personagens alegres e divertidas. Quando a voz grave anunciou a estreia, eu nem entendi que se tratava de uma série. Na verdade, eu nem sabia o que era série, em meus poucos anos. Anunciei logo, em alto e bom tom: “Vou assistir!”. Implicitamente, a partir de então, estava a TV reservada para mim na tarde do dia seguinte. Olhei sorrateiramente para um e outro. Nenhuma objeção. Aquele não era um horário concorrido. Que alívio!
Lembro-me que cada episódio era reprisado na manhã do dia seguinte. Assim, mesmo quando passei a estudar à tarde, pude continuar sonhando com o Príncipe Escamado, como a Narizinho; desbravando a mata, tão parecida com a do sítio da minha avó, com o Pedrinho; aprendendo coisas do arco da velha com as histórias de Dona Benta e com as explicações científicas do Visconde de Sabugosa; adquirindo mais sabedoria popular com Tia Nastácia e Tio Barnabé; rindo com o Zé Carneiro e Malazarte; assustando-me com a Cuca e o Saci e, às vezes, irritando-me com a espevitada Emília.
 Nestes meus primeiros anos de vida, em casa só havia uma enciclopédia e um dicionário em vários volumes. Nas escolas em que estudei, não havia biblioteca. Meu primeiro contato com Lobato foi por meio de um excerto de uma história da Narizinho no livro de Português, na antiga terceira série do Primário. Fiquei fascinada. Eu adorava as estórias (como escrevíamos na época) do livro didático porque, até então, meu contato com textos passava por temas como corrida espacial, teorias sobre a origem do universo e mitologia – meus temas preferidos na enciclopédia e dicionário. O gênero narrativo escrito era novidade para mim, embora estivesse acostumada a criar histórias em minha mente e cadernos.
Poucos anos depois, quando a série chegou ao fim, deixou um vazio e certa tristeza, mas o lado bom de ter crescido um pouquinho era poder ir sozinha ao centro da cidade. Era o início dos anos oitenta e Campinas ainda era um lugar calmo para se viver. Minha primeira excursão ao centro foi para encontrar minha irmã e pegar uns livros que eu precisava para a escola. O ônibus passou em frente à Biblioteca Municipal. Na semana seguinte, convenci minha mãe a me deixar ir à biblioteca fazer uma pesquisa de geografia. A enciclopédia de casa estava desatualizada, argumentei. Na biblioteca, descobri um universo. Retornei lá na semana seguinte com o comprovante de endereço, fiz minha carteirinha e voltei para casa com uma sacola de livros. “O Grupo”, de Mary McCarthy (porque gostei da capa e da orelha), “Ana Karenina”, de Leon Tolstoi (amei a capa e me interessava pela Rússia), “Eram os Deuses Astronautas”, de Erich von Däniken (imprescindível para uma menina fascinada pelo universo!) e as “Reinações de Narizinho” (para matar as saudades de meus companheiros de fim de tarde). Com meu gosto eclético, continuei lendo Lobato junto com Darwin, Huxley, Poe, Orwell...         
Na década de 90, pelas mãos de ninguém menos que Marisa Lajolo, voltei a encontrar as personagens do Sítio e Lobato, então mais completo, escrevendo para adultos.
Nos anos 2000, vi com emoção sobrinhos meus acompanhando a nova versão do Sítio do Picapau Amarelo para a TV. Foi nesta época que deixei o tema inicial de minha pesquisa de doutorado para me dedicar a analisar como Lobato adaptou para a perspectiva dos índios tupinambás a história de Hans Staden, um jovenzinho de vinte e poucos anos que esteve em terras que futuramente fariam parte do território brasileiro lá pelos idos de 1556 e depois publicou um livro sobre isso, pousando-se de herói. Mas esta já é outra história, que contarei qualquer dia desses.   
             O que eu quero contar hoje são duas novidades:
Primeira delas: em breve a Skript Editora vai lançar uma edição comemorativa dos 100 anos de Emília, com várias releituras da boneca falante feitas por mais de 20 autoras de histórias em quadrinhos e coordenada pela premiada Carol Pimentel. A mim coube a honra de assinar a introdução.
Segunda: meu projeto para traduzir Reinações de Narizinho para o alemão está entre os oito melhores projetos inovadores em ensino selecionados pelo Colegiado dos Professores da Universidade de Mainz “Johannes Gutenberg”. Isso significa que a Emília e todas as personagens do Sítio, em breve, vão falar pelos cotovelos também em alemão. Os alunos do curso de Tradução, sob a supervisão do Prof. Marcel Vejmelka e minha, estão cuidando para que isso aconteça e o Departamento de Língua Portuguesa da Faculdade de Tradução, Linguística e Estudos Culturais está nos dando todo o apoio necessário.
     Aguardem, que muitas coisas boas ainda estão por acontecer!

Bibliografia
LOBATO, Monteiro.  Prefácios e entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1959.

Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. Juntamente com John Milton, é responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução pela Universidade de Campinas e mestrado na mesma área, também pela Universidade de Campinas, onde se graduou em Letras.


 



4 comentários:

  1. Fantástico esse projeto. Lobato faz parte do nosso imaginário e merece ser conhecido em lugares onde a cultura literária recebe mais carinho. Parabéns. Vou continuar ansioso para ver o resultado e te desejo muito sucesso. Bjs André

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  2. Muito legal ficar sabendo de projetos com Monteiro Lobato, dentro e fora do Brasil. Muito sucesso com todos! Ana

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  3. Obrigada, Ana!!! E obrigada também por contribuir com esta história! Beijinhos.

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