O livro O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228, de Monteiro Lobato, recentemente passou a ser apontado como um romance racista. Para que cada um possa avaliar por si mesmo as referências a pessoas da etnia negra e a Jim Roy que se encontram no livro, reproduzo-as abaixo.
A quem quiser conhecer minha análise, indico Entre metafísica, distopia e mecenato, publicado em 2021. O livro pode ser adquirido diretamente comigo pelo e-mail vanetedezmann@gmail.com.
Quem sabe os excertos estimulem a leitura do livro do romance de Lobato por completo. Sua primeira edição se encontra reproduzida em Entre metafísica, distopia e mecenato.
Parte de minha análise também pode ser acessada em algumas palestras disponíveis
na internet: “Por que O presidente negro não foi publicado nos Estados Unidos”;
“Quem fala por Lobato em O presidente negro?” e “Entre metafísica, distopia emecenato”.
Para entender algo, nada melhor do que conhecer. Conhecimento é poder!
O conhecimento liberta!
Excertos 1 a 3: descrição de Jim Roy
Era Jim Roy, na realidade, um homem de imenso valor. Nascera fadado a
altos destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as
facetas da sua individualidade.
Como organizador e meneur, talvez superasse os mais famosos
organizadores surgidos entre os brancos. A história da humanidade poucos
exemplos apresentava de uma eficiência igual à sua. Consagrara-se desde muito
jovem à execução dum plano de gênio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita
compreensão do material humano sobre que pretendia agir.
Lobato, 2021, p. 259.
Ia
realizar um ideal. O problema negro da América teria com ele no governo a única
solução justa.
Lobato, 2021, p. 316.
E Jim sonhava o maior sonho que ainda
se sonhou na América.
Lobato,
2021, p. 316.
Excerto 4
Às
9 e 45, aproximou-se da janela e espalhou o olhar pelo casario de Washington. O
panorama que viu, entretanto, foi bem diverso. Descortinou todo o lúgubre
passado da raça infeliz. Viu, muito longe, esfumado pela bruma dos séculos, o
humilde kraal africano visado pelo feroz negreiro branco, que em frágeis
brigues vinha por cima das ondas, qual espuma venenosa do oceano. Viu o assalto,
a chacina dos moradores nus, o sangue a correr, o incêndio a engolir as
palhoças. Depois, o saque, o apresamento dos homens e mulheres válidos, a
algema que lhes garroteava os pulsos, a canga que os metia dois a dois em
comboios sinistros, tocados a relho para a costa. Viu, como goelas escuras,
abrirem-se os porões dos brigues para tragar a dolorosa carne de eito. E
recordou o interminável suplício da travessia... Carga humana, coisa, fardos de
couro negro com carne vermelha por dentro. A fome, a sede, a doença, a
escuridão. Por sobre as cabeças da carga humana, um tabuado. Por cima do tabuado,
rumores de vozes. Eram os brancos. Branco queria dizer uma coisa só: crueldade
fria...
Viu depois o desembarque. Terra, árvores, sol – não mais como em
África. Nada deles, agora – nem a terra, nem as árvores, nem o sol. Caminha,
caminha! Se um tropeça, canta-lhe o látego no lombo. Se cai desfalecido,
trucidam-no. A caravana marcha, trôpega, e penetra nos algodoais...
Viu Jim viçarem luxuriosos os algodoais da Virgínia depois que o negro
chegou. Além das chuvas, havia a regá-los, agora, o suor africano – suor e
sangue.
Viu dois séculos de chicote a lacerar carnes e ouviu dois séculos de
lágrimas, gemidos e lamentosos uivos de dor. E viu a América ir saindo dessa
dor, como a pérola, filha do sofrimento do molusco, nasce na concha...
Viu, depois, a Aurora da noite de duzentos anos: Lincoln. O branco bom
disse: Basta! Ergueu exércitos e das unhas de Jefferson Davis arrancou a pobre
carne-coisa.
As algemas caíram dos pulsos, mas o estigma ficou. Às algemas de ferro
se substituíram as algemas morais do pária. O sócio branco negava ao sócio
negro a participação de lucros morais na obra comum. Negava a igualdade e
negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena acima do sangue,
consagrasse a equiparação dos dois sócios.
E viu Jim que Justiça não passava de uma pura aspiração – e que só há
justiça na terra quando a força a impõe.
Jim: “Hei de fazer-me força e impor a justiça”,
murmurou o grande negro.
Em sua testa larga, profunda ruga se abriu. Seus olhos se cerraram e
Jim permaneceu imóvel, como siderado por uma ideia de gigante.
Lobato,
2021, p. 279-280.
Excerto 5
Lentamente
despertava a massa negra do longo letargo de submissão, e tremia, de narinas ao
vento, como o tigre solto na jungle. Toda a barbárie atávica, todos os
apetites em recalque, rancores impotentes, injustiças padecidas, todas as
vergastadas que laceraram a sua pobre carne até o advento de Lincoln e, depois
de Lincoln, todas as humilhações da desigualdade de tratamento – essa legião de
fantasmas irrompeu da alma negra como serpes de sob a laje que mão imprudente
levanta. E a raça maior, que através dos séculos não se atrevera a sonho maior
que o da mesquinha liberdade física, passou a sonhar o grande sonho branco da
dominação... (...) Amava Jim a América. Nos alicerces do colossal edifício, o
cimento ligador dos blocos fora amassado com o suor dos seus ancestrais. A
América surgira do esforço braçal de um dirigido pelo esforço mental de outro,
e, pois, tanto lhe falava ao sangue como ao do mais orgulhoso neto dos
pioneiros louros.
Lobato, 2021, p. 288-289.
Excerto 6
Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito ambiente
de pólvora. O solo latejava pulsações vulcânicas.
Tremeu
o negro diante da sua obra – e, sem vacilar, foi ao encontro do Kerlog. O
momento impunha a conjugação da sua força com a do líder branco.
Defrontaram-se
os dois chefes como duas forças da natureza, contrárias nos seus destinos, inimigas
pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por um nobre objetivo comum.
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 7
No primeiro ímpeto, Kerlog apostrofou o chefe negro.
Kerlog: “Vê tua obra, Jim! A América transformada num vulcão e
ameaçada de morte!”
O negro cravou no líder branco os
olhos frios, por um instante animados de estranho fulgor.
Jim: “Não minha, presidente Kerlog! Não é minha esta obra.
É sua, é dos seus, é de Washington, é de Lincoln. Vós, brancos mentistes na lei
básica. E ou confessais que mentistes ou reconheceis que a situação é
perfeitamente normal. Que aconteceu, presidente Kerlog? Houve um pleito e as
urnas libérrimas conferiram a vitória a um cidadão elegível. Acha
o presidente Kerlog que o pacto Constitucional sofreu lesão?
Naquele
peito a peito, Jim Roy dominava o adversário.
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 8
Jim: “Mas não se trata disso”, continuou ele. “O momento
não é para recriminações – e nesta matéria o presidente Kerlog bem sabe que
jamais um branco venceria um negro... O fato está consumado e, como chefes
supremos das duas raças, a nós só incumbe atender à salvação comum. Se não
contivermos de rédeas presas – eu, o monstro da ebriedade negra, o presidente Kerlog,
o monstro do orgulho branco, a chacina vai ser espantosa...”
Kerlog: “Ninguém sabe disso melhor que eu”, retrucou o chefe
da nação. “Nos estados do Sul já lavra o incêndio...”
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 9
O negro deu um salto.
Jim: “Jim o apagará! Jim manterá em cadeia de aço a pantera
africana. Ele a domina com os olhos, como o soba a dominava no kraal
donde a rapina dos brancos a tirou. Jim é rei!”
Era
tal a firmeza com que emitia o grande negro aquelas palavras que o tom de
superioridade do líder branco se demudou em admiração.
Viu
Kerlog que tinha diante de si não um feliz aventureiro político, mas uma dessas
incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos. Pela
primeira vez, enfrentava um homem que era algo mais que um homem. E, do fundo
do coração, lamentou Kerlog que a incompatibilidade racial o separasse de
tamanho vulto.
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 10
Jim prosseguiu:
Jim: “Mas só o
farei se o Presidente Kerlog, do seu lado, açaimar o orgulho branco. Eu domino
com o olhar e a palavra terrível. O Presidente Kerlog domina com a força do
estado. Em nossas mãos está, pois, a paz da América.”
O
líder branco baixou a cabeça. Meditava.
Kerlog: “Pois
salvemos a América, Jim!”, disse erguendo-se. “Açaima tu a pantera negra que
meterei luvas de ferro nas unhas da águia loura.”
Um
leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.
Lobato,
2021, p. 290.
Excerto 11
Kerlog: “Mas a
pantera que conte com o revide da águia!”, concluiu o líder branco depois que
as mãos se desapertaram. “A águia é cruel...”
Jim Roy retesou-se de todos os músculos, como a fera que se põe em
guarda.
Jim: “Ameaça-nos
como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a América ou rasga a sua Carta e
afoga-se num mar de sangue ou submete-se à minha direção?”
Lobato,
2021, p. 290.
Excerto 12
Kerlog olhou-lhe firme nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina:
Kerlog: “Não
ameaço. Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado grande para que eu a
enfrente com palavras. Estamos, face a face, não dois homens, sim duas almas
raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste momento o presidente
Kerlog. Fala o branco de crueldade fria, o mesmo que vos arrancou do kraal,
o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo que vos espezinhou nos algodoais.
Como há razões de estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias
como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o
fogo. O Sangue não raciocina, como os filósofos. O Sangue sidera, qual o raio.
Como homem, admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sinto o gênio. Mas, como
branco, só vejo em ti o inimigo a esmagar...”
Lobato,
2021, p. 290.
Excerto 13
O largo peito de Jim Roy arfava. A fera ancestral contida nele
transpareceu no fremir das ventas grossas.
Jim: “E não
trepidará o branco em esmagar a América se for condição para esmagar o negro?”,
rugiu.
Kerlog retrucou calmamente, como se pela sua boca falasse o próprio
deus do Orgulho:
Kerlog: “Acima da
América está o Sangue.”
Lobato,
2021, p. 290.
Excerto 14
Jim
abaixou a cabeça. Viu aberto à sua frente o eterno abismo. O dolicocéfalo louro
tinha a dureza do diamante. Armado de mais cérebro, dos vales dos Ganges
partira para a atrevida aventura conquistadora e vencera sempre, e não cedera
nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio fulmina. Era o criador.
Do rude instinto de matar do troglodita, extraíra a sua grande arte, a Guerra.
Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o profundo das águas e a
amplidão dos ares. E, com esse feixe de armas incoercíveis, rodeara, como de
baionetas, o diamante do seu Orgulho.
Lobato,
2021, p. 290.
Excerto 15
Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que, sereno, o
arrostava. E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou.
Jim sentiu-se retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e, mais
firme que nunca, disse, com durezas de rocha na voz:
Jim: “Seja! E porque assim é, dei o supremo golpe. A
América é tão sua como minha. Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la.”
Kerlog: “A justiça
está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a América. Mas o Sangue está acima
da justiça. O Sangue tem a sua justiça. E, para a justiça do Sangue Ariano, é
um crime dividir a América.
Jim
baixou a cabeça novamente e emudeceu. Pela segunda vez, sentia-se retina
ofuscada pelo sol.
Lobato,
2021, p. 291.
Excerto 16
O presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros
largos, disse:
— “Vejo-te
grande como Lincoln, Jim, e é com lágrimas nos olhos que contemplo tua figura
imensa, mas inútil... Adeus. Atendamos ao instante, açaimemos as nossas raças,
mas não fique entre nós sombra de mentira. O teu ideal é nobilíssimo, mas à
solução de justiça com que sonhas só poderemos responder com a eterna resposta
do nosso orgulho: Guerra!”
E
os dois seres humanos, subsistentes no imo dos dois líderes raciais,
abraçaram-se com lágrimas...
Miss Jane fez uma pausa, atenta à minha comoção. Aquele duelo de
gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que jamais a história
oferecera lance mais augusto – nem mais cruel. Vi claros inúmeros pontos até
ali obscuros na marcha da caravana que do fundo das idades vem vindo a
entredegolar-se com sanhudos ódios. Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas,
a Justiça Humana, e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue, um raio
cego...
Ayrton: E depois?, perguntei. Reentrou na
paz a América?
Jane: Sim, respondeu Miss Jane. Os dois
líderes entraram a agir de pronto. A ação de um foi tão rápida e segura como a
do outro. A pantera negra recolheu as garras e a águia loura enluvou as unhas.
Mas
o beluário negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca pusera na boca
de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as zagaias dos seus avós no peito dos
fulvos leões africanos – mortalmente...
Lobato,
2021, p. 290.
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